Continuamos hoje a nossa série de textos dedicados a fitas de Verão, sendo que desta vez vamos até Praga, mas não à actual, que é perfeita para weekend city break’s, para nómadas digitais e para excursões de reformados. A Praga a que vamos é a capital de um país que já não existe, e que se chamava Checoslováquia.
A mais célebre estação do ano nessa antiga capital europeia nem sequer é o Verão, é sim a Primavera de Praga, primavera essa, que terminou abruptamente em 21 de agosto de 1968.
Findou com tanques a entrar por Praga afora num dia de Verão.
Antes desse dia 21 de agosto de 1968, a Checoslováquia, mas sobretudo a cidade de Praga, andavam inquietas. A vida tal como a viviam os checoslovacos já não fazia sentido, tudo era demasiado pastoso, havia regras em excesso, a burocracia reinava, as pessoas eram vigiadas e controladas, e a descrença geral estava instalada.
Nisto, ali por meados da década de 60, surgem jovens escritores, artistas, músicos e cineastas que vêm agitar águas. Sacodem o pó, atiram fora a tralha velha e começam a criar coisas radicalmente novas, para que a vida tenha outra vez poesia.
O mais conhecido desses nomes é Milan Kundera, que no seu livro “A Insustentável Leveza do Ser”, nos dá um retrato exacto do ambiente que existia por Praga por nesses dias. Citemos uma passagem desse romance: “Parece que existe no cérebro uma zona específica a que poderíamos chamar memória poética, que registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida.”
Em Praga, por meados da década de 60, a vida era tudo menos bela, e foi por essa razão que jovens escritores, artistas, músicos e cineastas criaram um movimento a que posteriormente se vieram também a juntar políticos e a restante população, para que as janelas se abrissem, o cheiro a mofo desaparecesse, e Praga e a Checoslováquia voltassem a respirar livremente e pudessem sentir a beleza e a poesia da vida.
No entanto, tudo terminou em pleno Verão. Em Moscovo não gostaram da conversa, pensaram que em Praga já estava a haver liberdade a mais, e vai daí mandam os tanques para restabelecer a ordem, a burocracia, a vigilância, o medo e apatia.
Esse sonho de um "socialismo com rosto humano", ficou para a história como a "Primavera de Praga", tendo acabado esmagado pelas tropas soviéticas em Agosto de 1968. Na imagem abaixo, um cidadão mostra a hora exacta da invasão no seu relógio de pulso, tendo por diante a principal avenida de Praga.
Dois anos antes do término da Primavera de Praga, ou seja, em 1966, a cineasta Věra Chytilová realizou um filme que haveria de ficar para a história da sétima arte, “As Pequenas Margaridas”.
Nesse ano de 1966 era Verão em Praga, duas jovens moças, Marie I e Marie II, aborreciam-se, pois nada acontecia. Mas mesmo sem nada suceder, a indesmentível realidade é que elas existiam. Vejamos uma síntese da fita, em forma de trailer:
Em “As Pequenas Margaridas” nós, os espectadores, não simpatizamos com as personagens, não existe uma narrativa contínua e o estilo visual muda recorrentemente de um modo abrupto. Věra Chytilová, a realizadora afirmou que estruturou a fita para "restringir a sensação de envolvimento [do espectador] e levá-lo à compreensão da ideia ou filosofia subjacente".
Desde há muito, e actualmente quase sempre, que a ficção cinematográfica se alimenta da identificação dos espectadores com os personagens, o que Věra Chytilová nos diz, é que quis fazer exactamente o oposto.
Aqui fica o retrato das duas personagens principais, Marie I e Marie II.
O filme acompanha duas jovens Marie enquanto elas se envolvem numa série de brincadeiras bizarras e levam o caos a todos os sítios onde vão. Originalmente concebido como uma sátira da decadência de um país, o filme critica também as normas sociais e aqueles que aderem rigidamente às regras.
Věra Chytilová descreveu o seu filme como "uma necrologia sobre um modo de vida negativo". Acabou proibido nos cinemas da República Socialista da Checoslováquia.
“Restringir a sensação de envolvimento [do espectador] e levá-lo à compreensão da ideia ou filosofia subjacente", foi essa a explicação da realizadora para o seu filme, mas não se pense por isso, que estamos perante uma fita séria e pesada, antes pelo contrário, o tom é cómico.
Věra Chytilová conseguiu não só indispor as autoridades governamentais, como também a igreja, os movimentos feministas, os activistas políticos e até os intelectuais e artistas, em resumo, à época fez o pleno.
Vejamos uma famosa cena desse filme na qual decorre uma luta com comida. Num primeiro momento ouve-se uma música clássica, pomposa e solene, isto enquanto ao mesmo tempo Marie I e Marie II destroem totalmente uma mesa posta com as mais refinadas iguarias, que acompanham com os melhores vinhos. Num segundo momento ouve-se uma melodia Pop e Marie I e Marie II simulam uma passagem de modelos, desfilando por cima da mesa.
Compreende-se a ideia ou a filosofia subjacente, num primeiro momento a realizadora ridiculariza a solenidade e pomposidade do regime checoslovaco de então, e no segundo ridiculariza a sociedade por vir, a capitalista, a que vive da imagem e da superficialidade, e que décadas depois transformaria Praga na cidade perfeita para weekend city break’s, para nómadas digitais e para excursões de reformados.
E pronto, por aqui terminamos, em breve outra fita de Verão neste blog.
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