As autocaravanas são uma óptima forma de se fazer férias de Verão, pois desse modo consegue-se conjugar os confortos domésticos com o espírito de aventura. Por um lado, as autocaravanas possuem todas as comodidades do lar, quartos, WC, cozinha, sala de estar e tudo o mais, e por um outro lado, são também um modo de se fazer campismo, de se viver ao ar livre em pleno contacto com a natureza, e de se estar permanentemente “on the road”.
Em resumo, as autocaravanas fazem uma síntese que se cria impossível, pois permitem aos seres sedentários e domésticos, a esses que prezam os confortos certos, conhecidos e tranquilos do lar, serem igualmente nómadas e partirem à sorte, de cabelos soltos ao vento, em direcção a destinos incertos e desconhecidos. A autocaravana é no fundo dois em um, ou seja, uma improvável mistura de lar doce lar e de aventura é aventura.
Continuamos a nossa série dedicada a fitas de Verão. O filme de hoje é de 1971, foi realizado por Jacques Tati, e o seu título original é “Traffic”. Por alguma insondável razão, a tradução para português resultou no título “Sim, Sr. Hulot”.
Estamos então no início da década de 70, o Sr. Hulot é um designer de autocaravanas que trabalha para uma fábrica em Paris. Foi encarregue de levar um novo modelo de autocaravana por si projectado, até ao salão internacional do automóvel em Amsterdão.
Aqui o vemos, na imagem abaixo, envergando a sua gabardina de sempre, inevitavelmente acompanhado pelo indispensável guarda-chuva, todo aperaltado com o laço habitual, e na cabeça usa o chapéu do qual jamais se separa.
Também se vê na imagem, a nova e reluzente autocaravana projectada pelo Sr. Hulot que se prepara para iniciar a sua viagem até ao salão de Amsterdão, local onde será pela primeira vez exibida ao mundo.
Para quem vive no século XXI, a autocaravana na imagem acima parece ser bastante básica. Actualmente, tais veículos são enormes, metem-se-nos pela vista adentro e os seus interiores quase parecem ser de foguetões. Porém, não nos esqueçamos, que à época estávamos na década de 70, sendo as gentes de então menos exigentes com as suas férias de Verão do que o são agora. Era um tempo bem mais simples e modesto, do que o dos dias de hoje.
Nos tempos que correm, os bens adquiridos são uma extensão da personalidade de quem os adquire, isto aplica-se a tudo, mas sobretudo aos veículos motorizados. Seja um automóvel, uma mota ou uma autocaravana, o que interessa é que se dê nas vistas e desse modo o mundo inteiro, nem que o mundo inteiro seja apenas a nossa estreita rua, saiba quem somos e ao que vimos.
Na década de 70, os veículos motorizados também já se apresentavam como uma extensão da personalidade dos seus proprietários, contudo, havia uma nítida diferença.
Hoje em dia, são muitos os que têm uma personalidade, em que o mais que se destaca, é o incontido desejo de se mostrarem aos outros como sendo pessoas de sucesso, mas noutros tempos as coisas não eram bem assim, eram por consequência diferentes.
Há uma cena do filme “Sim, Sr. Hulot” em que vemos nitidamente os automóveis como uma extensão da personalidade dos seus proprietários, no entanto, tal é visível não pelos seus carros possuírem altas cilindradas, terem um design exclusivo ou apresentarem acessórios luxuosos, mas sim e simplesmente pelo modo como se moviam os pára-brisas.
Talvez quem nos lê, não acredite que os pára-brisas possam ser assim tão expressivos ao ponto de serem representativos de uma personalidade, mas se porventura duvidam, é verem:
Monsieur Hulot é um corpo estranho no interior do mundo moderno. Os seus gestos e movimentos provém de um tempo em que as máquinas, e em particular os automóveis, ainda eram praticamente inexistentes na vida quotidiana da maioria das gentes.
Claro que antes disso já existiam máquinas e automóveis, mas o espaço onde as máquinas funcionavam eram fundamentalmente os industriais, e automóveis só os possuíam uns poucos, e não a maioria. Terá sido ali por finais da década de 50, princípios da de 60, que o mundo do dia a dia foi completamente invadido pela tecnologia.
No interior dos lares apareceram máquinas para se fazerem as lavagens, para se cozinhar e até para se fazer umas torradas com chá. Ao mesmo tempo, no exterior, os automóveis tornaram-se acessíveis a uma grande parte das populações e as ruas e avenidas das cidades metamorfosearam-se por completo.
Mas a transformação não se deu só nas cidades, pois pelos campos afora rasgaram-se extensas auto-estradas, que mudaram para sempre o aspecto das paisagens campestres.
Todo este movimentado mundo moderno, exigiu novas regras, atitudes e automatismos. No caso dos automobilistas, precisou a ser preciso saber-se quando parar ou avançar num semáforo, quando mudar ou não de faixa de rodagem, em que situações ceder ou não a prioridade a outro veículo ou a um peão, e ainda toda mais uma longa série de práticas e procedimentos pelas quais o trânsito se rege e que todos tiveram de interiorizar.
O movimento do trânsito, quer seja nas cidades, quer seja nas auto-estradas, é uma espécie de coreografia em que todos os elementos sabem exactamente, quase automaticamente, que passos executar em seguida para que tudo flua com a leveza de um ballet.
Mas como antes dissemos, Monsieur Hulot é um corpo estranho no interior do agitado mundo moderno. Os seus gestos e movimentos nada têm de automático, pois provém de um tempo mais lento, no qual as máquinas ainda não marcavam o ritmo quotidiano das gentes comuns. Por consequência disso, é sempre ele quem faz com que a coreografia não flua e o incessante movimento abrande ou se detenha.
A coreografia do trânsito tem que estar sempre perfeitamente coordenada e todos os seus automobilistas-bailarinos têm de estar perfeitamente cientes dos passos a dar de modo a que os possam executar quase de forma automática, porém, Monsieur Hulot dá passos mais lentos e diferentes, ele é de um outro tempo, facto que inevitavelmente acaba por provocar uns quantos choques.
Numa das cenas de “Traffic”, vemos um acidente seguido de sucessivos despistes. A coreografia desfez-se e os carros fazem cavalinhos, engolem pneus e rodopiam, vira-se tudo do avesso e nenhum automóvel executa os passos de dança certos.
Quando em resultado de todo esse desatino, o trânsito se imobiliza e as pessoas saem dos seus automóveis acidentados, todos olham lentamente em volta, observam, espreguiçam-se e bocejam em uníssono. É um sinal nítido que o acelerado ritmo da modernidade, se deteve.
Uma vez tendo a dança do trânsito parado, todos parecem ter subitamente regressado a um tempo anterior, ao do Monsieur Hulot. Tempo no qual existia uma maior lentidão, e onde ainda era possível o lento olhar, a preguiça, o bocejo e o esticar-se os ossos. Tempo onde o veloz ritmo dos automóveis ainda não tinha imposto a sua lei.
Vejamos o que é provavelmente, o mais peculiar acidente automobilístico de sempre:
Uma das cenas mais significativas de “Traffic”, é quando a camioneta que transporta a nova autocaravana, fica sem gasóleo. Monsieur Hulot põe-se a caminho auto-estada afora, sempre em frente, com um recipiente, em busca de um posto de abastecimento.
A dado momento, do outro lado da auto-estrada, vê um automobilista que faz a pé o caminho oposto ao seu. Também esse automobilista ficou sem combustível, e também ele caminha sempre em frente, com um recipiente, à procura de um posto de abastecimento.
Olham um para o outro, cada um do seu lado da auto-estrada, e compreendem que indo em em sentidos contrários, fazem exactamente o mesmo caminho, ou seja, andam automaticamente sempre em frente.
Tendo ambos tomado consciência de que ir sempre em frente talvez não seja a melhor solução, decidem os dois cortar caminho e ir por percursos não automáticos, por atalhos e veredas.
Vão então pelos campos adentro, ao fundo avista-se uma aldeia. É muito provável que nessa localidade antiga, vinda de um outro tempo, encontrem finalmente combustível.
Esta cena de “Sim, Sr. Hulot”, é uma das mais significativas metáforas de uma certa forma de viver acriticamente a modernidade, a saber, aquela em que todos vão sempre em frente e nem se lembram de olhar para o lado e experimentar um caminho diferente.
Jacques Tati passou a vida a fazer filmes nos quais o seu personagem, Monsieur Hulot, desafia quase sem querer a modernidade e os seus impensados automatismos.
Tati não é um conservador, nem um saudosista do passado, ele simplesmente não quer que Hulot adira às modernas novidades tecnológicas, apenas porque todos os outros o fazem.
Hulot não é antiquado, é tão-somente desajeitado, pois os seus gestos e movimentos são de um tempo em que tudo era mais lento e nada funcionava automaticamente.
Aqui ficam uma série de gags de “Traffic”. Não são gags óbvios e rápidos, necessitam de tempo, de ser vistos com lentidão. São piadas típicas de Jacques Tati em que vemos as gentes a realizar gestos automatizados, iguais aos que todos os outros fazem, mas de repente percebemos o ridículo que é, caminharmos sempre em frente sem se percebermos porquê.
Como seria expectável, Monsieur Hulot chegou ao salão de automóvel de Amsterdão após este já ter encerrado. Aqui uma foto da sua bela autocaravana, excelente para se ter um Verão tão cómodo como no remanso lar, e ao mesmo tempo igualmente excelente para se viver uma autêntica aventura “on the road”.
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