Continuamos a nossa série de fitas de Verão, a de hoje intitula-se “Pedro, o Louco”.
Poder-se-ia resumir “Pierrot le Fou” do seguinte modo: Jean-Paul Belmondo, o actor, é Pierrot, aliás Ferdinand, um homem casado e entediado, que abandona sua vida estável em Paris e foge com Marianne, uma antiga namorada, que é interpretada pela actriz Anna Karina.
Fogem rumo ao sul, para junto do Mediterrâneo, local ideal para um Verão perfeito. Sítio onde o sol brilha intenso no céu e o mar tem tons de profundo azul. “Pierrot le Fou” é um filme de 1965 e foi realizado pelo grande Jean-Luc Godard.
Mas de que fogem Ferdinand e Marianne? Digamos que das vidas que ambos para si construíram. Ferdinand e Marianne tinham estado juntos uns quantos anos antes, há quatro segundo ele o diz, há cinco anos e meio pelas contas dela.
Por alguma razão não especificada, separaram-se. Neste entretanto, ele casou-se com a filha de um próspero industrial italiano, de seu nome Monsieur Expresso. Já dela apenas sabemos que esteve algum tempo com um americano. Ela não gosta de falar de si própria.
Ferdinand e Marianne reencontram-se, ele oferece-se para a levar a casa de carro. É no interior da viatura, que vão pondo a conversa em dia. Ele conta-lhe coisas acerca do seu casamento e das profissões que nesses anos foi tendo, ela pouco ou nada lhe conta.
Ela chama-o Pierrot, ele diz que o seu nome é Ferdinand. Ela insiste em chamá-lo Pierrot. Silêncio.
Marianne liga o rádio do carro, quebra-se o silêncio. As notícias falam da Guerra do Vietname e da morte de 115 soldados. Marianne reflecte sobre como tudo é anónimo, diz-se 115 homens mortos, como se tal fosse somente um número. No entanto, diz Marianne, cada um desses 115 homens terá ou não amado e sido amado, preferiria ir ao cinema ao invés de que ao teatro ou vice-versa, seria cobarde ou destemido…
De tudo isso e do resto da existência desses 115 homens, através das notícias nada mais saberemos. O que dessas vidas há para sabermos em termos informativos, é tão só e somente que estão mortos.
Vejamos essa cena da película, em que Pierrot, aliás Ferdinand, conversa co Marianne, após por puro acaso se terem reencontrado:
“Uma história deve ter um princípio, um meio e um fim, mas não necessariamente por esta ordem”, é uma das mais célebres frases de Jean-Luc Godard. Por assim ser, regressemos agora nós neste texto, a um sítio onde ainda não estivemos, a saber, ao princípio de “Pierrot le Fou”.
A fita, muito apropriadamente, inicia-se no segundo capítulo. De facto, e se pensarmos bem nisso, não há razão alguma para que os capítulos sejam numerados de forma sequencial. Nesse contexto, comecemos pelo segundo capítulo, que na fita é o primeiro.
Pierrot, aliás Ferdinand, prepara-se para ir a uma festa em casa dos pais da sua mulher, Monsieur e Madame Expresso. Lá chegado, o que ele (e nós espectadores com ele) constata, é que todos falam como se fossem anúncios publicitários.
Uns explicitam as características de marcas automobilísticas, outros louvam as magníficas qualidades de um desodorizante, e outros ainda tecem glórias a um shampoo.
Claro que com estes diálogos, Godard hiperboliza, todavia, não muito. Com efeito, todos nós já tivemos ocasiões na vida, nas quais escutámos conversas em que alguém o mais que faz é enaltecer os atributos de uma determinada marca, seja esta de roupa, de automóveis, de electrodomésticos ou doutra coisa qualquer.
Pierrot, aliás Ferdinand, deambula pela festa sem nada dizer, até que encontra o realizador norte-americano Samuel Fuller, que é aqui interpretado pelo próprio Samuel Fuller.
Pierrot, aliás Ferdinand, diz-lhe que sempre quis saber o que era o cinema, ao que Fuller lhe responde o seguinte: “Film is like a battleground … Love, hate, action, violence, death. In one word, emotion!”
Sim, os filmes, os verdadeiros, não são anúncios publicitários, e as pessoas, as reais, não são apenas consumidores nem anónimos 115 mortos. Aqui fica o deambular de Pierrot, aliás Ferdinand, pela festa:
Pierrot, aliás Ferdinand, e Marianne são personagens de um filme, e não figurantes de um qualquer insípido anúncio publicitário ou a gente anónima e não raras vezes morta, dessa que aparece todos os dias nas notícias.
Ambos são tão reais e vivos, como é o grande cinema. Por consequência disso, as suas vidas só poderão ser um campo de batalha, um sítio onde juntos viverão uma daquelas histórias que dava um filme. Histórias essas, nas quais há “Love, hate, action, violence, death. In one word, emotion!”
Em determinado momento da narrativa, quando livres já percorrem os caminhos do quente sul, Marianne toma súbita consciência de que talvez não deseje uma vida tranquila e perfeita junto ao pacífico mar azul:
MARIANNE : Et qu’est-ce que fera ?
PIERROT (aliás FERDINAD): Rien. On existera.
MARIANNE : Oh, la la !… Ça va pas être marrant.
“E o que faremos?”, pergunta Marianne, ao que Pierrot, aliás Ferdinand, responde, “Nada. Existiremos”. Como é evidente, Marianne desconfia que tal não vai ter grande graça, “Ça va pas être marrant”, diz ela.
Já numa outra ocasião, nós, os espectadores, tínhamos percebido que Marianne não tinha vindo à aventura, rumo ao sul, para passar férias descansada. A dado momento, vendo que Pierrot, aliás Ferdinand, conduzia o automóvel com toda a tranquilidade deste mundo, como se andasse a passear, Marianne questiona-o:
MARIANNE: O que é que estás a fazer?
PIERROT (aliás FERDINAND) – A olhar para mim.
MARIANNE– O que vês?
PIERROT (aliás FERDINAND)– Um homem prestes a lançar-se sobre um precipício a 100km por hora.
MARIANNE– Eu vejo uma mulher apaixonada pelo homem prestes a lançar-se sobre um precipício a 100km por hora.
PIERROT (aliás FERDINAND)– Beijemo-nos, então.
Feita esta conversa, Pierrot (aliás Ferdinand), como se fosse o personagem de um filme, lança o carro em direcção ao mar Mediterrâneo. Nada de mal lhes sucedeu, nem a ele, nem a Marianne, foi só mais um instante que se pode resumir numa palavra: cinema. Ou seja, e como dizia Samuel Fuller, “In one word, emotion”.
“Uma história deve ter um princípio, um meio e um fim, mas não necessariamente por esta ordem”, é por isso que regressamos agora e novamente ao início do filme, “Pierrot le Fou”.
Numa das primeiras cenas da fita, vemos Jean-Paul Belmondo deitado na banheira de sua casa de cigarro na boca, a ler um livro sobre a arte de Diego Velásquez.
“Velásquez é o pintor dos fins de tarde, da vastidão e do silêncio. Mesmo quando pinta em plena luz do dia, mesmo quando pinta num quarto fechado”.
“O mundo em que vivia era triste. Um rei degenerado, infantes doentes, loucos, anões, enfermos e seres deformados vestidos de príncipes, cuja função era rirem de si mesmos e fazer rir os que existiam acima da lei da vida, presos à etiqueta, à conspiração, à mentira, presos à confissão e ao remorso. Com a inquisição e o silêncio permanentemente diante da sua porta”.
Na mais célebre obra de Velásquez, ao centro, há uma menina, quase uma criança. Ao fundo, reflectidos num espelho, os seus pais, os reis.
Deitado na banheira, Jean-Paul Belmondo, o pai, lê à sua pequena filha estas e outras passagens sobre a arte de Velásquez. Nisto, chega a mãe da menina, e diz a Pierrot (aliás Ferdinand), que é louco por ler à criança tais coisas. Vejamos como tudo se passou:
“Pierrot le Fou” é também sobre isso, sobre outras formas possíveis de ver e falar sobre o mundo, as pessoas e as coisas que existem. Falar mas não com as palavras com que nos falam nos anúncios publicitários, ver mas não como se fôssemos apenas consumidores. Falar mas não com as palavras que nos falam os noticiários, ver mas não com a indiferença com que vemos guerras e mortos a toda a hora.
Falar e ver como Diego Velázquez pintava, interessado nos múltiplos reflexos e sombras que se desprendem de pessoas e objectos. Falar e ver como Diego Velázquez pintava, interessado no intervalo existente entre a imagem e o que ela representa, interessado na diferença entre o que as palavras dizem e o que se esconde no fundo delas.
As notícias falam da Guerra do Vietname e da morte de 115 soldados. Há imagens que os mostram, esses 115 mortos. No entanto, cada um desses 115 homens terá ou não amado e sido amado, preferiria ir ao cinema ao invés de que ao teatro ou vice-versa e seria cobarde ou destemido.
Para além dos mortos anónimos que todos os dias os noticiários nos mostram, há reflexos e sombras que se desprendem dessas vidas. Para além das palavras com que nos dão as mais terríveis notícias, há coisas fundas que se escondem no fundo e no meio delas.
Quando Ferdinand diz, lá mais para o meio da fita, que só daí a sessenta anos, após o fim, quando já mortos e sem vida, poderão saber se estiveram ou não apaixonados um pelo outro, Marianne responde-lhe prontamente que não, que sabe que o ama, agora.
E é também agora, que findamos este texto, e isto sem falarmos do fim do filme. A nós só nos interessa o princípio e o meio da fita e não necessariamente por esta ordem. “O cinema é como a vida”, é uma frase atribuída a Jean-Luc Godard.
E pronto, terminamos então mais um texto dedicado a uma fita de Verão. Em breve outras virão, aqui, neste blog.
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