Ao contrário do que sucede com os mais pequenos, os grandes, quando crescidos e adultos, deixam de acreditar em fantasmas. É pena, pois há fantasmas que merecem bem uma visita. "Mas os fantasmas não existem”, dirão os graúdos, todavia, tal é falso, pois eles efectivamente existem e nós sabemos que sim.
Não se pense que a nós, eles de vez em quando nos aparecem de repente e nos vêm assombrar a vida, nada disso, antes o oposto, somos nós os que, de quando em vez, calmamente os vamos visitar. Não acreditam? Então sigam-nos.
Convocamos para esta nossa visita uns quantos fantasmas, o romancista e poeta Jorge de Sena, senhor que nasceu em Lisboa no ano de 1919, e morreu lá longe, na Califórnia, em 1978.
Apesar de já há muito ser falecido, Jorge de Sena continua a ser uma excelente companhia, para se ir de visita a locais propícios a fantasmagorias.
Londres é um sitio onde habitam abundantes fantasmas, portanto um local óptimo para começarmos a nossa visita. Vamos visitar um fantasma que reside no Museu Britânico, que fica ali para os lados do bairro de Bloomsbury.
O nome desse fantasma é Artemidoro. Actualmente vive numa tumba egípcia no segundo andar do dito British Museum.
Artemidoro viveu no Egipto em tempos muito antigos, mas não assim tão distantes, quanto o é o tempo das pirâmides e da esfinge. Digamos que viveu ali algures entre o terceiro e o quarto século da nossa era.
Artemidoro era copta, o que significa que professava a religião cristã. Desde tempos imemoriais e até aos dias de hoje, que os coptas, apesar de serem milhões, são ainda assim e sempre, uma minoria religiosa no Egipto.
Os coptas tinham o original costume, de pintarem na tampa dos caixões, o retrato de quem lá ia dentro. Desse modo, legaram à posteridade, os rostos e os olhares de quem viveu há imensos séculos.
Entre todos esses que viveram há imensos séculos, inclui-se o rosto e o olhar do nosso fantasma, Artemidoro, cujo retrato abaixo se segue.
Tínhamos dito, que teríamos como companhia nesta nossa visita à fantasmagoria, o romancista e poeta Jorge de Sena. Todavia, até agora, o homem nada disse, porém, vai dizê-lo agora através da sua poesia.
Vejamos então o que diz Sena num poema dedicado a Artemidoro:
A tua múmia está no Museu Britânico
entre as fileiras tristes do segundo andar.
Alguém ta descobriu num cemitério copta,
que os areais e o tempo haviam ocultado,
por séculos de calma eternidade
que em teu caixão não profanado por
ladrões de sepulturas conheceste.
Secaste assim serenamente, enquanto
quem tu eras se perdeu depressa
nas memórias humanas que habitaste.
Não eras rei, nem príncipe. E célebre
talvez o tenhas sido para os mercadores
que trataram contigo, para os teus amigos
com quem ceavas altas horas, para
tua mulher, teus filhos (só quando pequenos,
te viam gigantesco e absorto e paternal).
A múmia que ficou de ti (só ressequida pele
rasgada aqui e ali, mostrando os ossos
por onde as sujas ligaduras se soltaram).
não se distingue de outras na fileira
envidraçada em que há decénios pó,
um fino pó, será de ti ou de Londres.
Importa o teu caixão, ou mais, a tampa
em que, segundo os usos do teu tempo,
um pintor cujo ofício principal seria
retratar os mortos te compôs um rosto.
É bem possível que tu próprio encomendasses,
risonho e pensativo, esse retrato [...]
E o teu líquido olhar ficou fitando
[...] que seria esse olhar tão líquido e profundo que me fita
envidraçado pela morte e pelas crenças todas
e também pela vidraça que, interposta,
nos não separa menos do que séculos?
Artemidoro escuta! No silêncio ouves
os “buses” que passam [...]
Após Londres, que tal irmos visitar um fantasma vindo de Milreu, de seu nome Júlia? Esta fantasma não é uma múmia, como o era Artemidoro, o fantasma anterior. Digamos que Júlia é uma bela mulher do pescoço para cima, daí para baixo nada sabemos. Júlia não é composta de cabeça, tronco e membros, é toda ela uma cabecinha de vinte e nove centímetros.
Júlia é uma jovem mulher, bem modelada, de traços expressivos e grande naturalidade. Tem o nariz fragmentado e pequenas falhas na superfície do queixo e do pescoço. Ostenta um penteado “ninho de vespa”, que estava muito na moda em todo o Império Romano em meados do século I d.C.
Milreu, que fica lá para os Algarves, foi em tempos uma próspera cidade romana, hoje mais não é que uma ruína. Foi em Milreu, em finais do século XIX, que um arqueólogo viu ressurgiu a cabeça de Júlia, que por séculos e séculos esteve soterrada.
Qual um fantasma saído das profundezas da terra que o cobria, Júlia, a cabeça sem corpo de mulher, reergueu-se das trevas. Actualmente, esta senhora vinda da época romana, encontra-se no Museu de Arqueologia em Lisboa. Foi aí que nós um dia a visitámos, acompanhados pelas palavras de Jorge de Sena, que dela disse o seguinte:
Esta cabeça evanescente e aguda,
tão doce no seu ar decapitado,
do Império portentoso nada tem:
nos seus olhos vazios não se cruzam línguas,
na sua boca as legiões não marcham,
na curva do nariz não há povos
que foram massacrados e traídos.
E uma doçura que contempla a vida,
sabendo como, se possível, deve
ao pensamento dar certa loucura,
perdendo um pouco, e por instantes só,
a firme frieza da razão tranquila.
Viveu, morreu, entre colunas, homens,
prados e rios, sombras e colheitas,
e teatros e vindimas, como deusa.
Apenas o não era: o vasto império
que os deuses todos tornou seus, não tinha
um rosto para os deuses. E os humanos,
para que os deuses fossem, emprestavam
o próprio rosto que perdiam. Esta
cabeça evanescente resistiu:
nem deusa, nem mulher, apenas ciência
de que nada nos livra de nós mesmos.
Dito isto, voltemos a Londres e ao Museu Britânico. Quando visitamos fantasmas, podemos ir de sítio para sítio, mesmo para os mais distantes num instante, como se fossemos um sopro.
Se de Milreu nos veio até o presente uma cabeça sem corpo de mulher, em Londres encontraremos o fantasma de um corpo de mulher, mas sem cabeça. Não só sem cabeça, mas também sem pernas e braços. Estamos portanto perante uma espécie de monstro, sendo isso mesmo que Jorge de Sena dela nos diz:
É um monstro em pregas vastas, sem cabeça,
sem pernas e sem braços. É montanha
de ancas e torso, e de que os seios são
como rochedos. Pedra, a própria pedra
vibrando sob os véus das névoas e das nuvens,
e parda de distância. Assim brotou,
vulcânica nas chamas dos primórdios dias,
ou lenta se ascendeu da crosta entreaberta,
para sentar-se larga à beira das planícies,
e debruçar-se nos desfiladeiros
em que é si mesma, abrupta, com pés
ocultos onde os mares são profundezas
compactas e negras.
Se num primeiro olhar Jorge de Sena viu um monstruoso fantasma feminino, num segundo momento o seu olhar adoçou-se. Viu então que nesse fantasma se adivinhava a carne que outrora houve, o seu suave vulto e toda a graciosidade de mãos, pés, boca, ombros, coxas e demais partes do corpo, do que na Grécia Antiga terá sido uma bela mulher ou, quiçá, uma deusa:
E, no entanto,
um suave vulto se adivinha dentro
das curvas e das pregas. Se adivinha branco,
e se adivinha límpido e gracioso,
com mãos e dedos, com pescoço e boca,
com olhos e entranhas, coxas, ombros,
vida que irrompe da harmonia pétrea
É um monstro delicado. Peso bruto,
uma matriz de estátuas. Sob o céu,
sob astros cintilantes, e ante as ondas
que com o vento vão lambendo as pregas
e pregueando-lhe a superfície lisa,
a vida vai rompendo a casca da montanha,
e do ovo sai proporcionada e pura,
alada em passos de que o corpo se ergue,
e de cabelos suspendendo a altura.
Ó terra, ó monstro, ó pedra, ó doce manto
que os véus recobrem temporais e eternos
Sem pernas e sem braços, sem cabeça,
ó torso e joelhos, seio sem palavra,
ó estátua prometida, carne imaculada
Já visitámos fantasmas de homens, de mulheres e quiçá de seres divinos, assim sendo, e para fazermos a ronda completa, façamos uma última visita, mas desta vez a um bicho, e mais concretamente, a uma gazela.
A gazela cujo fantasma visitámos, repousa agora no Museu Britânico, no entanto, em tempos idos, há milénios, terá percorrido as florestas da Ibéria. Muito antes dos Gregos Antigos, do Império Romano ou dos Coptas Egípcios, já a gazela correria e saltaria pelos vastos campos da Península Ibérica.
Península onde havia um povo, os Iberos, de quem pouco resta, não muito mais que esta gazela. Quem seria esta gazela? Um bicho sacrificado aos deuses? Ou porventura, um bicho que seria ele próprio uma figura divina? Não sabemos, mas não o sabermos, não é razão para que não se lhe dedique um poema, e foi mesmo isso o que Jorge de Sena fez:
Suspensa nas três patas, porque se perdeu
uma das quatro, eis que repousa brônzea
no pedestal discreto do museu.
Ergue as orelhas, como que à escuta, e os pés
são movimento que ainda hesita, enquanto
o vago olhar vazio se distrai
entre os ruídos soltos da floresta.
Há muito as árvores caíram. Há
perdidos tempos sem memória que
morreram as aldeias nas montanhas
e pedra a pedra se deliram nelas.
Há muito tempo que esse povo – qual? –
violado foi por invasões, e em sangue,
em fogo e em escravidão, ou só no amor
dos homens que chegavam em navios
de longos remos e velas pandas
se dissolveu tranquilo, abandonando
os montes pelos vales, a floresta
pelas escarpas onde o mar arfava
nas enseadas mansas e nas praias,
e as fontes límpidas por rios que
entre a verdura, sinuosa iam.
Há muito, mas esta gazela resta
com seu focinho fino e o liso torso
e o peito quase humano. Acaso foi
a qualquer deus oferta? Ou ela mesma
a deusa foi que oferenda recebia?
Ou foi apenas a gazela, a ideia,
a pura ideia de gazela ibérica?
Suspensa nas três paras se repousa.
E pronto, por aqui finalizamos esta nossa visita a fantasmas para gente grande, na qual tivemos a excelente companhia do romancista e poeta Jorge de Sena.
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