Neste Outubro vai passar por esse mundo inteiro, uma campanha publicitária promovida pelo Turismo de Portugal intitulada “Portugal is Art”, sendo o objectivo geral da dita, convidar gentes de outros países a visitarem-nos.
Numa das passagens dessa campanha, convida-se a malta de outras terras “a descobrir um território onde o quotidiano se eleva à condição artística e onde cada experiência revela uma dimensão cultural única”.
Nós, os que aqui vos escrevemos, ficámos imediatamente com um sorriso de orelha a orelha, por sabermos que nesta nossa amada pátria, cada experiência quotidiana se eleva à condição artística e revela uma dimensão cultural única. Era coisa que não sabíamos, mas que agora já sabemos.
De facto, o que por cá não nos faltam são experiências quotidianas que se elevam à condição artística e revelam uma dimensão cultural única, assim sem pensarmos muito nisso, vem-nos logo à lembrança a extraordinária experiência diária que é viajar no Metropolitano de Lisboa.
Com efeito, não há um único dia, um só para amostra, em que não se ouça pelos altifalantes nas estações de Metro, o seguinte mantra, dito em inglês e tudo: “The train may take longer than usual. Thank you for your understanding”.
O que o passageiro comum do Metropolitano poderia pensar serem somente atrasos constantes, é na verdade uma experiência com uma dimensão cultural única, onde o quotidiano se eleva à condição de obra de arte.
Já vos explicaremos, de que modo se dá essa metamorfose, pela qual os constantes atrasos do Metro são afinal de contas cultura, e da boa. Para já, o que importa termos em mente é que “Portugal is Art”.
Talvez haja quem se questione sobre em que medida, é que os constantes atrasos do Metro poderão ser arte, no entanto, a resposta é simples.
Para a compreendermos, temos de pensar no momento inaugural da arte contemporânea, que se deu no início do século XX, quando o célebre Marcel Duchamp pegou num mero urinol e o expôs num museu, declarando-o uma obra de arte.
Com esse ousado gesto, Marcel Duchamp pôs em causa todas as expectativas existentes até então sobre o que é ou não é uma obra de arte. A partir de Duchamp, conceptualmente, tudo pode ser arte, desde que o artista assim o entenda e o declare.
Foi essa a grande revolução estética causada pelo dito urinol, obra que vemos na foto abaixo, ao lado do seu criador conceptual, o Marcel Duchamp.
Ora bem, o que os artistas que administram e trabalham no Metropolitano fazem, é equivalente ao que Marcel Duchamp fez, ou seja, põem em causa todas as expectativas conceptuais dos passageiros, sobre o que é um transporte público.
Os passageiros do Metropolitano de Lisboa teriam uma certa concepção do que é um transporte público, todavia, essa concepção é completamente revolucionada, quando descobrem que as carruagens do Metro podem, ou não, passar pela estação em tempo útil.
Se a concepção de arte foi abalada por Duchamp, a concepção de transporte público foi abalada pelo funcionamento do Metropolitano.
A experiência quotidiana elevada à condição artística e reveladora de uma dimensão cultural única, é tão mais rica, porquanto os passageiros do Metropolitano descobrem também que a larguíssima maioria das escadas rolantes pura e simplesmente não funcionam, e descobrem ainda que nas estações, quase nunca há um único funcionário para prestar informações ou fornecer auxílio quando tal é necessário. Em síntese, “Portugal is Art”.
Há um segundo aviso emitido pelos altifalantes do Metropolitano, que eleva ainda a um nível mais intenso essa mesma experiência artística quotidiana dos passageiros, e que é o seguinte: “The circulation is interrupted. At the moment, it is not possible to predict the duration of the interruption, which could be prolonged. We thank you for your understanding."
Repare-se na subtileza e sensibilidade de quem compôs estes avisos sonoros, no primeiro de que antes falámos diz-se “The train may take longer than usual”, mas no segundo, de que agora falamos, acrescenta-se uma importante nuance, pois diz-se “it is not possible to predict the duration of the interruption”. Em resumo, é pura poesia.
Há portanto poesia no Metro, e outra coisa não seria de esperar, uma vez que “Portugal is Art”. Abaixo mais uma imagem da referida campanha publicitária, na qual se podem ver dois artistas nacionais, sentados nas respectivas pranchas de surf.
Na verdade, há uma forma de arte para a qual a lusitana nação parece ser grandemente dotada, a saber, a arte da comédia. Digamos que Portugal é especialista em fazer-nos sorrir e até rir, ainda que seja de modo involuntário.
É um talento imenso, Portugal provoca-nos gargalhadas, sobretudo quando por cá se tentam fazer coisas a sério. A esse propósito, atentemos num outro aspecto da campanha “Portugal is Art”.
Então não é que, no preciso mês em que a campanha está a ser lançada a nível internacional, os principais museus de Portugal vão encerrar as portas durante meses, quando não anos? Dadas as circunstâncias, o título da campanha devia antes ser “Portugal is Art, mas está fechado para obras”.
Em 2025 e prolongando-se longamente pelo ano de 2026, para além dos já encerrados Museu Nacional de Arqueologia, Museu Nacional do Traje e Museu Nacional da Música, vão também encerrar em breve o Museu Nacional do Teatro e da Dança, o Museu Nacional de Arte Antiga e o Museu Nacional do Azulejo.
Juntam-se a estes encerramentos, o do Museu da Gulbenkian e o da Torre de Belém. Em conclusão, “Portugal is Art”, mas não pelos próximos tempos.
No fundo, talvez a estratégia do Turismo de Portugal seja surrealista, ou seja, convidam-se os turistas a vir cá à nossa terra, onde cada experiência quotidiana se eleva à condição artística e revela uma dimensão cultural única, no preciso e exacto período em que os maiores e melhores museus nacionais estão fechados para obras.
É um abrir de portas ilusório, ou seja, surrealista, facto que nos leva a pensar, que talvez tenha sido intencional, e que mais uma vez estejamos perante uma estratégia conceptual, equivalente à criada por Marcel Duchamp.
Os estetas de início do século XX tinham uma série de expectativas sobre o que era uma obra de arte, e nisto deparavam-se com o urinol de Duchamp e eram obrigados a rever o seu mapa conceptual acerca do que é a arte.
Os passageiros do Metropolitano de Lisboa têm umas certas expectativas acerca do que deve ser um transporte público, e diariamente têm de fazer uma revisão dos seus conceitos.
Os turistas que nos próximos tempos nos venham visitar convencidos de que “Portugal is Art”, vão também ter de redesenhar as suas ideias relativamente ao que significa “Portugal is Art”, uma vez que vão encontrar inúmeros museus de portas trancadas.
O presidente dos Museus e Monumentos de Portugal, face aos factos, manifestou publicamente uma clara preocupação com esta situação, todavia, o Presidente do Turismo de Portugal retorquiu que não vê “razões para preocupação” pelo encerramento de diversos museus coincidir com uma campanha turística focada na cultura.
Dizem-nos os responsáveis pela campanha publicitária, que o seu objectivo é “inspirar os viajantes a descobrir um país onde viver é uma expressão de arte”. Dito isto, o que nós estranhamos, é que sendo Portugal um país onde viver é uma expressão de arte, ninguém tenha manifestado a mínima preocupação com os que cá vivem.
Na verdade, há quem se preocupe pelos turistas não irem ter durante largo tempo acesso a muitos dos nossos principais museus, contudo, ninguém se dignou a proferir um lamento pelos estudantes, docentes, investigadores e simples cidadãos nacionais, por também não irem ter acesso a esses equipamentos.
Parece um contra-senso, então se em Portugal viver é uma expressão da arte, não era de nos preocuparmos com os que cá vivem? Não são afinal os portugueses vivos, aqueles cujo viver é uma expressão de arte?
Abaixo um conhecido cidadão nacional, expressando-se e desse modo elevando o quotidiano português a uma condição artística, na qual cada experiência se revela numa dimensão cultural única.
Será que ninguém se importa com os portugueses, essa gente cuja forma de viver é uma expressão de arte? Provavelmente não é nada disso o que se passa, pois na realidade, segundo o entendimento conceptual do Turismo de Portugal, tudo nesta nossa terra é arte.
Mais uma vez, constatamos que Marcel Duchamp não anda longe. Se para Duchamp tudo pode ser arte, até mesmo um urinol, para o Turismo de Portugal tudo pode igualmente ser arte.
O Turismo de Portugal, explica muito bem essa concepção na sua campanha publicitária, na qual nos dá claras pistas do seu significado. Comer uma lagosta é arte, beber um tinto também é arte, e o que é igualmente arte é ir à praia apanhar sol.
O Turismo de Portugal não só aproveitou, como também ampliou, as teorias de Marcel Duchamp. Com efeito, se para este último, qualquer objecto colocado num museu adquiria o estatuto de arte, para o Turismo de Portugal tudo é arte, mesmo não sendo colocado num museu.
Um leitão à bairrada colocado sobre o mesa é arte, uma lagosta colocada no estômago é arte, um copo de tinto bem colocado de modo a ir ligeiro pela goela abaixo é arte, uma ida a uma feira ou a um festival é arte, uma ida à praia é arte, e sendo ao campo, também o é, assim como é qualquer coisa que nós portugueses façamos, pois feitas as contas, “Portugal is Art”.
Vejamos o anúncio publicitário do Turismo de Portugal, que, como não poderia de ser, também ele é igualmente arte:
E pronto, assim finalizamos, e mais não dizemos. Ou melhor, só mais uma coisa: Portugal is Art...
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