Nós não gostamos de gente com opiniões firmes e certezas absolutas. Gostamos ainda menos de quem está sempre pronto para insultar, ultrajar e ofender, quem quer que tenha uma opinião diferente da sua.
Nos tempos que correm, se alguém diz “sim”, imediatamente surge quem diga que “não”, depois aparece uma legião de fanáticos do que disse “sim” e simultaneamente um exército de gente para defender o que disse “não”. Passado um poucochinho estão todos a descompor-se uns aos outros, mesmo que ninguém saiba bem o que está a dizer.
Abrir o X, o TikTok ou o Facebook é uma excelente oportunidade para assistir a esses contínuos espetáculos de gritaria, hostilidade e ódio. Qualquer notícia, por mais banal que possa ser, transforma-se inevitavelmente em motivo para uma batalha digital opinativa, que posteriormente prossegue às mesas dos cafés, nos empregos, nos ginásios, nos telejornais e nas escolas.
O que toda essa gente sempre pronta a destratar e a enxovalhar, quem tenha certezas e opiniões diferentes das suas não sabe, é que a hostilidade e o ódio que destilam não nasce espontaneamente.
O que toda essa gente não sabe, é que as suas firmes opiniões e certezas absolutas são o resultado de um processo minuciosamente orquestrado. Com efeito, há quem se dedique a elaborar e a divulgar narrativas que dividem o mundo em facções irreconciliáveis, alimentando ao mesmo tempo uns quantos medos tribais acerca do ou de quem é diferente.
Cada certeza absoluta e cada opinião inabalável tem por trás de si um objectivo incendiário, mesmo que quem as emita disso não se dê conta. Por trás das frases fortes e assertivas há um cálculo bem pensado, por trás de cada inimigo inventado, existe uma estratégia. Na verdade, actualmente, a hostilidade e o ódio são ferramentas de poder que geram movimentos políticos, audiências e estratoesféricos lucros económicos.
O ódio é um espetáculo pensado e organizado, cuja maquinaria está bem oleada e onde todos têm o seu papel. Nesse espectáculo há diversos tipos de intervenientes, temos por exemplo aqueles que convertem o seu ódio numa identidade e a sua hostilidade numa causa pela qual vale a pena lutar.
Este tipo de intervenientes, são aqueles que de um momento para o outro decidem pôr-se a odiar algo ou alguém. Tanto podem odiar os emigrantes, como a disciplina de cidadania, como as mulheres, como as vacinas, como a União Europeia, como sabe-se lá que mais, odeiam e pronto.
Uma vez pondo-se um conjunto significativo de gente a odiar algo ou alguém, rapidamente se dá o passo seguinte, ou seja, esse ódio que une um grupo é transformado numa identidade e constitui-se como uma causa.
Qualquer coisa serve para alimentar o ódio, por exemplo, há quem um dia se tivesse posto a odiar o facto de a terra ser redonda, vai daí, a esse primeiro juntaram-se mais uns quantos a dizer que sim, e de repente temos uma identidade e uma causa, a saber, o terraplanismo.
Um outro tipo de interveniente neste espectáculo global de hostilidade e ódio, são aqueles que fornecem o palco para que todos esses ódios sejam recorrentemente exibidos.
Televisões, jornais, redes sociais, fóruns digitais e outros locais que tais, sabem que o ódio e a hostilidade rendem. Não há nada que dê tanta audiência e venda tão bem como ver gente a gritar as suas absolutas certezas e as suas firmes opiniões, sobretudo se essa berraria for acompanhada de um ódio tribal relativamente a algo ou alguém. O que não falta são espectadores fascinados com essas algazarras em estilo reality-show.
Todavia, os mais perigosos intervenientes deste espectáculo global são os comerciantes do ódio, esses que sabem perfeitamente como alimentar o ressentimento das gentes e bem embalá-lo, de modo a obterem influência e poder, ou de forma a o venderem em campanhas eleitorais e em o transformarem em audiências com as quais obtêm lucros milionários.
São fáceis de identificar as razões para este crescimento do ódio e da hostilidade, são quatro as causas. A primeira é o modelo de comunicação das redes sociais, que prioriza a raiva e a indignação, que são o que mais cliques gera e mais capta a atenção.
A segunda é a vitória da opinião sobre a verdade, já não importa o que é ou não real, mas sim o que cada pessoa sente que é.
A terceira é o retorno do pensamento tribal, que a pouco e pouco vai expulsando o pensamento crítico das sociedades em favor da lealdade ao grupo.
E por fim, a mudança do paradigma político, ou seja, a substituição do diálogo pelo confronto, no qual o objectivo não é convencer o adversário com argumentos válidos, mas simplesmente aniquilá-lo.
Nesta nova economia, captar a nossa atenção é essencial. A atenção tornou-se um dos mais cobiçados produtos do mercado. As grandes empresas tecnológicas, os órgãos de comunicação social, os publicitários e os políticos, todos se esforçam por que lhes demos a máxima atenção. A atenção vale votos, vale ouro, vale milhões.
Nem a internet, nem os diversos órgãos de comunicação têm hoje em dia como principal objectivo fornecer-nos informação. O seu intuito primordial é captar a nossa atenção, sendo que, a emoção mais lucrativa, a que mais nos prende, é a indignação. O capitalismo actual transforma toda e qualquer indignação em ódio, pois esse é o isco mais eficaz para capturar a nossa atenção.
O capitalismo actual quer a nossa atenção e para a obter é imprescindível que cada um de nós tenha "a sua própria verdade", pois só dessa forma o ódio crescerá. Para tal, o mais importante já não é o que efectivamente é real e verdadeiro, mas sim o que cada um sente. A objectividade foi relegada para segundo plano, agora reina a emoção, que se tornou no critério de validação e de verdade seja lá do que for.
Construímos agora a nossa visão do mundo a partir de meros sentires e opiniões pessoais transformadas em artigos de fé. Por assim ser, qualquer crítica às nossas crenças é actualmente sentida como se fosse um ataque ao nosso eu mais íntimo.
Uma vez transformados sentires e opiniões pessoais em verdades absolutas, em certezas totais, o que antes era um saudável confronto de ideias, torna-se agora quase sempre numa batalha de egos, onde se passa rapidamente de um normal desacordo para uma agressão.
Quando faço uma fusão das minhas opiniões e sentires com o que sou, a minha identidade passa a fundamentar-se nessas crenças. Desse modo, questionar opiniões e ideias deixa de ser um convite ao diálogo e passa a ser uma espécie de agressão existencial.
Questionar a opinião de alguém, equivale assim a colocar em risco a existência e a identidade desse mesmo alguém. O ódio nasce quase sempre do medo, neste caso o medo de que um outro desconstrua as certezas absolutas sobre as quais muitas das actuais pessoas baseiam as suas existências.
Desde sempre que os homens lidaram com o medo agrupando-se, formando tribos. No actual contexto, o medo de que outros questionem certezas absolutas e ponham em risco a minha existência, quem sou, conduz ao aumento de agressivas tribos.
Insultos, ameaças, mentiras ou negações de factos tornaram-se rituais destas novas tribos, no fundo, são manifestações que demonstram lealdade e reforçam o sentimento de pertença. Estar certo não importa, o que importa é provar de que lado se está. O discurso de ódio prospera nestas novas tribos, estando assente no medo de que o outro, o diferente, ponha em risco a existência e a pureza da minha tribo, da minha gente, de quem sou.
Dito isto, o ódio pode ser desconstruído. Há três caminhos, primeiro, recuperar o diálogo como forma de solucionar problemas comuns; segundo, cultivar a amizade cívica, aquela virtude que nos permite reconhecer-nos como concidadãos mesmo quando em desacordo, e, finalmente, educar na ars amandi como antídoto contra a ars odiandi.
Primeiro, para que a capacidade de dialogar floresça, é preciso haver gente capaz de o fazer. Competências como ouvir, pensar e discordar sem ofender ou insultar, adquirem-se por meio da educação e de uma prática constante. Fazer com que os alunos nas escolas se envolvam frequentemente em diálogos não é uma bizarria pedagógica, é uma tarefa fundamental para que no futuro próximo continuem a existir comunidades e sociedades dignas desses nomes.
Segundo, para que se cultive a amizade cívica, todos têm de se reconhecer como concidadãos, o mesmo é dizer, como membros de uma comunidade em que o bem de um está ligado ao bem de todos.
Não se trata de todos gostarmos uns dos outros, mas sim de percebermos que até mesmo o desacordo mais severo deve estar enquadrado numa estrutura de respeito mútuo, podemos combater certas ideias, mas nunca o direito destas serem expressas.
Na antiga Roma tal traduzia-se no conceito de Concórdia, algo que permitiu à república sobreviver às mais graves tensões internas.
Em muitas das cidades do Império Romano, foram inclusivamente erguidos templos à Concórdia.
Terceiro, o ódio diminui-nos porque tudo o que precisamos fazer é ceder a um impulso. Odiar é fácil, basta parar de pensar. O amor, por outro lado, exige disciplina e elevação.
O ódio aprisiona-nos nos mais baixos instintos, o amor abre um caminho de transcendência. Educar na arte de amar (ars amandi) significa reverter cada um dos movimentos do ódio. Se o ódio simplifica, o amor busca a complexidade e as nuances. Se o ódio generaliza e agrupa todos os odiados na mesma categoria, o amor reconhece a diferença e a singularidade de cada vida. Se o ódio anula a razão, o amor exige o pensamento crítico e a reflexão. E se o ódio idolatra a pureza, o amor celebra a pluralidade como fonte de riqueza.
Na antiguidade, quando falavam de ars amandi não se referiam a um qualquer sentimentalismo ingénuo, mas sim a um acto político que afirmava que a convivência só será possível se ensinamos os mais jovens a amar ao invés de odiar.
Numa época que nos treina na arte do ódio, aprender a arte de amar (ars amandi) torna-se assim uma forma de resistência.
Terminamos com um mosaico romano, um em que se celebrava a importância da ars amandi.







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