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Mãos quentes, coração frio, amor vadio




Começamos hoje com um dito popular que nos fala de mãos. Um dito que nos diz, que as mãos nos dizem e mostram coisas, que por vezes não são visíveis de outras formas e modos. É um dito algo ingénuo, mas que acerta no essencial, ou seja, não raras vezes as mãos dão-nos a ver o que os olhos não veem.

“O artista que corta a madeira, martela o metal, molda a argila, talha o bloco de pedra, traz até nós o passado do homem, um homem antigo, sem o qual não estaríamos aqui. Não é admirável vê-lo em pé, entre nós, em plena era mecânica, esse sobrevivente obstinado da era das mãos? Os séculos passaram por ele sem alterar a sua vida profunda, sem fazê-lo renunciar aos seus modos antigos de descobrir o mundo e de o inventar.”

A citação acima é de um ensaio escrito em 1939 por Henri Focillon, cujo título é “O Elogio da Mão”.


Na actualidade, o órgão dominante é a visão, olhamos continuamente para ecrãs e é quase exclusivamente desse modo que tentamos ver e entender o mundo em nosso redor, contudo, o que assim perdemos é imenso.

Platão foi o primeiro a sugerir que os olhos eram o mais importante dos órgãos dos sentidos, tendo estabelecido uma relação metafísica entre a visão do olho e a visão da mente, ou seja, assim como os olhos veem as realidades sensíveis e exteriores, assim a mente vê as realidades interiores e as ideias.

No fundo, para Platão, a visão era o mais racional dos sentidos. Todavia, há muitas realidades que a visão não capta, mas mais do que isso, há muitas realidades que não são propriamente racionais, o mesmo é dizer, que extravasam a capacidade da nossa mente de as olhar, analisar, classificar, arrumar e racionalizar.

Há realidades invisíveis, que não sabemos bem como enquadrar em ideias ou sequer em meras palavras. São realidades cujos nossos olhos e a nossa mente não conseguem ver e racionalizar totalmente. São realidades que nos aparecem não à vista, mas sim através de pressentimentos resultantes de sensações tácteis.

As mãos transmitem-nos essas sensações, mas não apenas elas, por exemplo, os lábios são igualmente instrumentos maravilhosos para pressentirmos realidades invisíveis. São-no também os pés, que nos dizem muitas coisas invisíveis acerca das superfícies pelas quais caminhamos.

Em síntese, reduzir a percepção do mundo em nosso redor quase exclusivamente à visão, para mais através de écrans, e por consequência disso não dar a devida atenção a outro tipo de sensações e muito particularmente às que nos chegam pelas mãos, é empobrecer grandemente as experiências que dele podemos ter.


Mãos com dedos que apenas teclam ou fazem deslizar um contínuo rol de imagens, são mãos pouco aproveitadas. Em boa verdade, os muito valorizados olhos, são sobretudo órgãos receptores, mas as mãos são acção. Elas rezam, agarram, tocam e criam. Por vezes, até se diria que pensam.

Pensam não como a mente, pensam não de uma forma racional, mas sim através de sensações e pressentimentos. Por alguma razão, sentimos um encanto diferente e maior quando vimos uma obra de arte na qual as mãos que a teceram tiveram um papel fundamental, e não temos essa mesma sensação perante uma obra de arte conceptual.

Vejamos o caso abaixo. Estamos perante uma obra de arte conceptual, na qual se aborda a relação entre um objecto real, uma cadeira, a sua imagem fotográfica e a sua definição num dicionário.

A ideia é interessante e percebemos racionalmente qual a intenção desta obra, porém, sabemos que na sua criação, as mãos do artista tiveram pouco ou nenhuma intervenção, foi antes na sua mente que se originou a obra.


Vejamos agora um exemplo oposto ao anterior. Na obra abaixo de Maria Helena Vieira da Silva, há todo um elaborado trabalho realizado pelas mãos da artista, sendo certamente essa uma das razões, pela qual no entrelaçado da sua tessitura podemos entrever realidades invisíveis e até encantarmo-nos.

O que observamos não pode ser traduzido racionalmente através do olho da mente, tudo o que nesta obra está presente implica uma outra forma de pensar que não exclusivamente a racional, uma que se revela através de sensações e pressentimentos.

Em resumo, o fundamental desta obra de Vieira da Silva não é exactamente o que se vê e percebe, é sim o que se entrevê de invisível e o que não entendemos mas sentimos.


Por muito interessante que possa ser um artista conceptual, há sempre um diferente encanto numa obra de arte em cuja criação estiveram envolvidas mãos.

A esse propósito, falemos do cineasta Robert Bresson (1901-1999), e mais especificamente do seu filme “O Carteirista (Pickpocket)”.

Comecemos por uma frase do próprio Robert Bresson: “Que no teu filme se sintam a alma e o coração, mas que seja feito como um trabalho manual”.

“…como um trabalho manual”, diz Bresson, coisa que não será fácil de conseguir numa produção cinematográfica, dada a quantidade de gente e de meios técnicos envolvidos. No entanto, Bresson conseguiu-o.

Conseguiu-o sobretudo no seu filme “O Carteirista”. A história da película é simples, trata-se de um jovem parisiense com poucos meios de subsistência, que decide enveredar pela via do crime.

Mas se a história é simples, tudo o resto é complexo. Tão complexo como os intricados entrelaçados de Vieira da Silva nos quais o importante não é o que se vê, mas o que se pressente e entrevê.

Na cena que abaixo vos apresentamos, o personagem principal aprende como usar as mãos para ser um bom carteirista. A intenção de Bresson não era glorificar essa actividade criminosa, era sim exaltar o poder divino das mãos.

Na cena ouve-se o Magnificat de Jean-Baptiste de Lully e também por isso sabemos que estamos a assistir a um momento místico, dir-se-ia até que vemos um ritual de iniciação, um instante pleno de religiosidade.


Num livro recentemente editado em português, “Os meus amigos”, o autor, Hisham Matar, conta-nos logo ao início uma história de um homem que estava deitado no chão do seu quarto, a quem um gato veio lamber os dedos dos pés. Mas em seguida, o gato deu uma dentada num dos dedos do homem, que continuou deitado. Depois o gato arrancou-lhe um bocado de carne de um dos dedos dos pés, no entanto, o homem permaneceu imóvel. Posteriormente, o gato começou a comer todos os dedos dos pés do homem e mais tarde as pernas, os braços e as mãos. O gato foi-se embora e o homem ficou reduzido à sua parte superior. O mais que podia fazer era ver e pensar.

Nós sabemos bem qual é a intenção do autor ao relatar-nos esta história, todavia, entrevemos que terá algo a ver com aquilo sobre o que hoje aqui escrevemos. Talvez não seja por acaso, que o filme favorito de Hisham Matar seja “O Carteirista”.

Para finalizarmos, aqui fica uma coleção de mãos, as muitas que apareceram nos diversos filmes de Robert Bresson:

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