Dedicamos hoje um segundo texto, aos muitos que dedicaremos a diversos
heróis do Brasil. Teremos portanto uma série de escritos, ao longo dos quais
falaremos de poetas, romancistas, artistas, cineastas, músicos, escultores e
arquitectos brasileiros.
Fazemo-lo a propósito da imensa exposição, que a Fundação Gulbenkian em
breve inaugurará na sua sede e cujo título é Complexo Brasil.
O semanário Expresso noticiou a futura exposição com o seguinte título: “Portugal olha-se ao espelho e vê um Complexo
Brasil: esta exposição não é para principiantes”.
A tal título, o Expresso acrescentou ainda a subsequente introdução: “Num momento em que algum Portugal puxa dos
galões nacionalistas-excludentes, a Fundação Calouste Gulbenkian abre as portas
da sua sede para abrigar o país de onde vem a maior comunidade de imigrantes no
território nacional. Para ultrapassar a narrativa dos Descobrimentos, a nova
exposição da Gulbenkian, Complexo Brasil, propõe Desencobrimentos.”
Acerca desse mesmo assunto, o jornal Público titulou uma sua reportagem
deste modo: “Na Gulbenkian, Complexo
Brasil: conseguiremos olhá-lo nos olhos?”
Dito isto, o nosso herói de hoje é
uma mulher, a arquitecta brasileira Lina Bo Bardi, nascida em Roma em 1914, mas
que viveu a maior parte da sua vida em São Paulo, cidade onde viria a falecer
em 1992.
Em Itália, Lina Bo Bardi sofreu
bastante com a Segunda Guerra Mundial (Aqueles
que deveriam ter sido anos de sol, de azul e alegria, eu passei de baixo da
terra correndo e descendo sob bombas e metralhas), razão pela qual, partiu
para o Brasil e por lá ficou (Quando a
gente nasce, não escolhe nada, nasce por acaso. Eu não nasci aqui, escolhi esse
lugar para viver. Por isso, o Brasil é meu país duas vezes, é minha Pátria de
Escolha).
Decepcionada com Itália, logo após o
fim da Segunda Guerra Mundial, Lina atravessou o Oceano Atlântico rumo a novas
oportunidades. “Lá só havia destruição, e
eu queria construir”, afirmou ela numa entrevista, ao que juntou o
seguinte: “O que nos empolgou a vir para
o Brasil foi saber, na época, da arrancada da arquitectura moderna por aqui. Eu
me senti em um país onde tudo é possível; aqui reencontrei as esperanças
perdidas nos dias de guerra.”
Uma vez naturalizada brasileira, Lina
Bo Bardi tornou-se rapidamente numa das mais importantes figuras culturais do
país. No Brasil, Lina desenvolveu uma imensa admiração pela cultura popular,
sendo essa uma das principais características do seu trabalho, ou seja, um constante
diálogo entre o Moderno e o Popular.
A arquitecta posou para a foto
abaixo, em que a vemos na escada de acesso à sua Casa de Vidro, no Morumbi, em
São Paulo.
Considerada um ícone da moderna
arquitectura brasileira, a Casa de Vidro foi o primeiro projecto desenhado e construído
por Lina Bo Bardi.
O local escolhido para a implantação
da casa foi o Morumbi, bairro da Zona Sul de São Paulo, sendo que, a presença
marcante do vidro e a paisagem natural circundante são os pontos fundamentais
do edifício.
A transparência das áreas comuns da
casa abre-se para a vegetação em redor, que assim toma parte na composição
interna dos ambientes. A
diáfana clareza da casa proporciona igualmente uma extensa vista do bairro
vizinho, o Morumbi.
A Casa de Vidro não só funcionou como
a residência de Lina Bo Bardi, como desde a sua construção em 1951, que se
caracterizou também por ser um importante e popular ponto de encontro de
múltiplos artistas, arquitectos, escritores e demais intelectuais.
Hoje em dia, a casa é a sede do
Instituto Bardi, sendo um espaço cultural aberto ao vasto público que a visita.
A Casa de Vidro é no fundo uma
moderna metáfora do Brasil, ou seja, tal como o país, é um espaço amplo,
desimpedido, desembaraçado, desempoeirado e plural.
A Casa de Vidro é o exacto oposto
daquelas moradias muradas, assim como dos condomínios fechados e de todas as demais
coisas que se concebem para as pequenas, médias e altas burguesias portuguesas
se encerrarem nas suas tranquilas e acanhadas alegrias domésticas.
Há quem por cá, se sinta protegido,
estando fechado ou
murado numa estreiteza de horizontes, mas esse não era de certeza absoluta, o
credo da arquitecta do Brasil.
A propósito disso, Lina Bo Bardi
disse o seguinte: “Tenho horror em
projectar casas para madames, onde entra aquela conversa insípida em torno da
discussão de como vai ser a piscina, as cortinas. Gostaria muito de fazer casas
populares.”
Abaixo um esquisso de Lina Bo Bardi,
com o desenho do contexto urbano da Casa de Vidro.
Um outro espaço emblemático
projectado por Lina Bo Bardi foi o Sesc Pompeia, um centro de cultura e de
lazer localizado no bairro Vila Pompeia, na zona oeste da cidade de São Paulo,
que alberga em si salas de teatro, locais para exposições, piscinas,
lanchonetes e ainda bibliotecas.
O Sesc Pompeia foi considerado pelo
jornal norte-americano The New York Times, como sendo uma das 25 obras
arquitectónicas mais importantes construídas na segunda metade do século XX.
O Sesc Pompeia é um brilhante exemplo
de como a arquitectura pode dar uma renovada vida a um edifício. Originalmente o
local era uma fábrica, contudo, em 1982 foi transformado num sítio
multifuncional e vibrante, no qual os visitantes circulam livremente pelos
distintos e diversos espaços.
Para que tal fosse possível, Lina Bo
Bardi adicionou ao edifício inicial, duas longas torres de betão ligadas por
passadeiras diagonais.
O desenho de Lina Bo Bardi enfatiza os
elementos estruturais do edifício, assim como os materiais, e mais
concretamente, o betão.
Não existem no Sesc Pompeia quaisquer
artifícios ou elementos decorativos superficiais, sendo que a concepção arquitectónica
foi orientada por uma visão utópica, em estrita consonância com os mais
autênticos e puros ideais do Modernismo.
Será talvez por causa dessa limpidez
e genuinidade, que o Sesc Pompeia é um dos mais populares edifícios de São
Paulo.
Ouçamos o que disse Lina Bo Bardi
acerca das intenções do seu projecto: “Comer,
sentar, falar, andar, ficar sentado tomando um pouquinho de sol… A arquitectura
não é somente uma utopia, mas um meio para alcançar certos resultados colectivos.
A cultura como convívio, livre escolha, liberdade de encontros e reuniões.”
Vamos agora falar-vos do Museu de
Arte de São Paulo, também conhecido como Masp. Fazem parte da sua colecção
obras de artistas como Bosch, Rembrandt, Velásquez, Rubens, Renoir, Cézanne, Monet,
Van Gogh e Picasso entre tantos outros.
Em resumo, o Masp é um dos grandes
museus de arte do mundo, sendo considerado o mais importante de todo hemisfério
sul.
A sua colecção integra mais de onze
mil obras, desde arte africana até à das Américas, passando pela asiática, pela
brasileira e pela europeia. Possui peças que abrangem todos os diferentes períodos históricos, desde a
antiguidade clássica até ao século XXI.
Como já certamente terão adivinhado,
também o Masp foi desenhado por Lina Lo Bardi.
Quem já visitou museus, sabe que na
maior parte deles os percursos estão previamente determinados, havendo
inclusivamente algum mal-estar se porventura algum visitante o percorre de modo
diferente do estabelecido. Lina Lo Bardi desenhou o Masp com a intenção
exactamente oposta: “Sempre quis que o
museu fosse um ‘museu de luz’, como a luz do sol e do ar. Nesse sentido, o
museu não deveria ter um percurso preestabelecido. O visitante deveria
percorrê-lo da forma que desejar, como se estivesse a caminhar numa floresta,
seguindo o seu próprio caminho na floresta.”
Na verdade, Lina Bo Bardi quis criar um
museu feito de grandes espaços abertos e poéticos, onde as peças foram
colocadas de modo a permitir que os visitantes contemplassem arte deambulando
ludicamente e em plena liberdade.
Abaixo um esquisso do Masp, no qual
as intenções poéticas e lúdicas de Lina Bo Bardi são perfeitamente visíveis.
“Quando
o músico e poeta americano John Cage veio a São Paulo, de passagem pela Avenida
Paulista mandou parar o carro na frente do MASP, desceu, e andando de um lado
para outro do belvedere, os braços levantados, gritou: É a arquitectura da
liberdade! Acostumada aos elogios pelo maior vão livre do mundo, com carga
permanente, coberto em plano, achei que o julgamento do grande artista talvez
estivesse conseguido comunicar aquilo que queria dizer quando projectei o MASP.
O museu era um nada, uma procura da liberdade, a eliminação de obstáculos, a
capacidade de ser livre perante as coisas.”
Caminhamos agora para o final deste
texto, todavia, não queremos fazê-lo sem antes transcrevermos mais uma luminosa
citação de Lina Bo Bardi, uma em que ela nos fala de duas das suas obras, das
quais também nós neste texto falámos:
“Voltei muitas vezes à Fábrica de Pompeia, aos sábados e aos domingos,
até fixar claramente aquelas alegres cenas populares. É aqui que começa a
história da realização do Sesc Pompeia. Existem belas almas e almas menos
belas. Em geral as primeiras realizam pouco, as outras realizam mais. É o caso
do Masp. Existem sociedades abertas e sociedades: a América é uma sociedade
aberta, com prados floridos e o vento que limpa e ajuda.”
Imaginemos os brasileiros aquando da
inauguração do Masp, num tempo em que ainda viviam em ditadura. Quando nele
entraram pela primeira vez, o vento de liberdade que então terão experimentado,
ter-lhes-á parecido uma coisa inédita, como que um prado florido.
Tais sensações são uma consequência
directa do desenho arquitectónico de Lina Bo Bardi, sendo essa a razão pela
qual, consideramos essa mulher um herói do Brasil.
Em breve, neste blog, mais uns quantos heróis do Brasil…












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