Este será o sexto texto que dedicamos a diversos heróis do Brasil, uma série ao longo da qual falaremos de poetas, romancistas, artistas, cineastas, músicos, escultores e arquitectos.
Fazemo-lo a propósito da imensa exposição que a Fundação Gulbenkian inaugurou por estes dias e cujo título é Complexo Brasil.
O semanário Expresso ao noticiar a dita exposição, afirmou que “Portugal olha-se ao espelho e vê um Complexo Brasil: esta exposição não é para principiantes”. Já o jornal Público interrogou-se do seguinte modo: “Na Gulbenkian, Complexo Brasil: conseguiremos olhá-lo nos olhos?”
Dito isto, o nosso herói de hoje é o Aleijadinho (1738-1814), escultor e arquitecto, e um dos maiores nomes das artes plásticas do Brasil, um grande artista do período Barroco.
O seu verdadeiro nome era António Francisco Lisboa, sendo que era filho de um respeitado mestre de obras e arquitecto português, Manuel Francisco Lisboa, e da sua escrava africana, cujo nome era simplesmente Isabel.
Manuel Francisco Lisboa, o pai do Aleijadinho, era de Odivelas, e terá chegado ao Brasil sensivelmente em 1720. O certo é que chegou a Ouro Preto, no Estado de Minas Gerais, em 1724. Local onde foi responsável pelos projectos de vários edifícios marcantes dessa cidade, como por exemplo, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição…
…a Igreja de Nossa Senhora da Carmo…
…e o Palácio dos Governadores, situado mesmo no centro da urbe, na afamada Praça Tiradentes.
Ouro Preto foi um dos primeiros sítios do mundo a ser classificado como Património Mundial, tendo o contributo de Manuel Francisco Lisboa e do seu filho, o Aleijadinho (António Francisco Lisboa), sido absolutamente decisivos para isso.
O Aleijadinho não era o legítimo herdeiro de Manuel Francisco Lisboa, para além de ser filho de uma escrava, o seu pai, já no Brasil, casou com Maria Antónia de São Pedro, uma açoriana que lhe deu quatro filhos. Ainda assim, o Aleijadinho herdou do seu progenitor o que aprendeu, ou seja, noções de desenho, de arquitectura e de escultura.
Com tais ensinamentos, o Aleijadinho criou uma obra imensa, quer esculpindo a madeira de cedro em figuras bíblicas para ornamentar múltiplas capelas, quer esculpindo a pedra-sabão, um mineral abundante em Minas Gerais, que usou em esculturas destinadas ao adro e às fachadas de muitos templos.
Segundo os seus biógrafos, o Aleijadinho era pardo-escuro, tinha voz forte, a fala arrebatada, e o feitio agastado. A estatura era baixa, o corpo cheio e mal configurado, o rosto e a cabeça redondos, o cabelo preto e anelado, a barba cerrada e basta, a testa larga, o nariz regular e um tanto pontiagudo, os beiços grossos, as orelhas grandes e o pescoço curto. Gostava de se entreter nas danças vulgares e de comer bem, e amasiou-se com a mulata Narcisa, tendo com ela um filho.
A partir de 1777 surgiram sinais da doença que fizeram com que Aleijadinho ganhasse o nome pelo qual ficou conhecido. Sofreu uma doença grave, que pode ter sido sífilis ou lepra, não se sabe bem. Tendo sido a doença o que fez com que as suas mãos e pés ficassem deformados. Apesar disso, tinha um extremo cuidado ao trabalhar a anatomia das suas figuras escultóricas, com intuito de alcançar a máxima perfeição e rigor.
Abaixo a obra “A Prisão de Cristo”, da autoria do Aleijadinho, que pode ser vista no Santuário do Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas, Minas Gerais.
Também em Congonhas, no adro do mesmo Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, podem contemplar-se uma dúzia de esculturas executadas entre 1800 e 1805, sendo que, cada uma delas representa um dos doze profetas.
Quem quer que queira entrar no templo do Bom Jesus, primeiro tem de percorrer o caminho das pedras metamorfeseadas em profetas, um percurso totalmente talhado pelas mãos do Aleijadinho.
No anfiteatro de montanhas
Os profetas do Aleijadinho
Monumentalizam a paisagem
As cúpulas brancas dos Passos
E os cocares revirados das palmeiras
São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu
Bíblia de pedra-sabão
Banhada no ouro das minas
É em Ouro Preto que se situa a Igreja de São Francisco de Assis, eleita por votação popular em 2011, uma das sete maravilhas de origem portuguesa no mundo.
Na Igreja de São Francisco de Assis é perfeitamente visível que a pedra passou pelas mãos de uma espécie de alquimista do barroco. Com efeito, o Aleijadinho transformou as rudes e brutas pedras em preciosas jóias lapidadas, seja nas formas da ornamentada fachada, nos dois púlpitos ou no esplêndido lavabo existente na sacristia. Neste último, está gravada a frase: "Este é o caminho que conduz ao céu”, escrita em latim.
A Igreja de São Francisco de Assis é a obra-prima da arte colonial portuguesa, sendo que nela se expressa a essência do Brasil. Vejamos o que nos diz acerca disso, o pensador brasileiro Mário de Andrade:
“É certo que as igrejas de Aleijadinho não possuem majestade. Mas a majestade não faz parte do brasileiro, embora faça parte comum da nossa paisagem. Carece, no entanto, compreender que o sublime não implica exatamente majestade. Não é preciso ser ingente para ser sublime. As igrejas do Aleijadinho não se acomodam com o apelativo 'belo', próprio à São Pedro de Roma, à Catedral de Reims, à Batalha, ou à horrível São Marcos de Veneza. Mas são muito lindas, são bonitas como o quê. São dum sublime pequenino, dum equilíbrio, duma pureza tão bem arranjadinha e sossegada, que são feitas pra querer bem ou pra acarinhar, que nem na cantiga nordestina.”
Para terminarmos esta nossa viagem por Minas Gerais, vamos à Matriz de Nossa Senhora da Conceição de António Dias, que se situa em Ouro Preto e que foi projectada por Manuel Francisco Lisboa, o pai do Aleijadinho, que era de Odivelas.
Em 1968 foi instalado na Matriz de Nossa Senhora da Conceição de António Dias, o Museu Aleijadinho. Foi a esse local que Carlos Drummond de Andrade, o mais influente poeta brasileiro do século XX, se dirigiu para escrever um poema dedicado ao grande mestre do barroco brasileiro:
Vamos até à Matriz de António Dias
onde repousa, pó sem esperança, pó sem lembrança, o Aleijadinho.
Vamos subindo em procissão a lenta ladeira.
Padres e anjos, santos e bispos nos acompanham
e tornam mais rica, tornam mais grave a romaria de assombração.
Mas já não há fantasmas no dia claro,
tudo é tão simples,
tudo tão nu,
as cores e cheiros do presente são tão fortes e tão urgentes
que nem se percebem catingas e rouges, boduns e ouros do século 18.
Vamos subindo, vamos deixando a terra lá em baixo.
Nesta subida só serafins, só querubins fogem conosco,
de róseas faces, de nádegas róseas e rechonchudas,
empunham coroas, entoam cantos, riscam ornatos no azul autêntico.
Este mulato de génio
lavou na pedra-sabão
todos os nossos pecados,
as nossas luxúrias todas,
e esse tropel de desejos,
essa ânsia de ir para o céu
e de pecar mais na terra;
esse mulato de génio
subiu nas asas da fama,
teve dinheiro, mulher,
escravo, comida farta,
teve também escorbuto
e morreu sem consolação.
Vamos subindo nessa viagem, vamos deixando
na torre mais alta o sino que tange, o som que se perde,
devotas de luto que batem joelhos, o sacristão que limpa os altares,
os mortos que pensam, sós, em silêncio, nas catacumbas e sacristias,
São Jorge com seu ginete,
o deus coberto de chagas, a virgem cortada de espadas,
e os passos da paixão, que jazem inertes na solidão.
Era uma vez um Aleijadinho,
não tinha dedo, não tinha mão,
raiva e cinzel, lá isso tinha,
era uma vez um Aleijadinho,
era uma vez muitas igrejas
com muitos paraísos e muitos infernos,
era uma vez São João, Ouro Preto,
Mariana, Sabará, Congonhas,
era uma vez muitas cidades
e o Aleijadinho era uma vez.
Terminamos então este nosso texto dedicado ao Aleijadinho, em breve neste blog falaremos de mais uns quantos heróis do Brasil…










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