Neste Natal vamos fazer um exercício de psicanálise e, mais do que isso, trazer-vos uma boa-nova. Por estas alturas, ou seja, por entre a consoada e o dia 1 de Janeiro, há sempre quem faça imensos planos para o novo ano. Planos esses que inevitavelmente saem furados.
No próximo ano é que vou fazer dieta, no próximo ano é que vou fazer exercício físico, no próximo ano é que vou ler os sete volumes de "Em Busca do Tempo Perdido", no próximo ano é que vou à Malásia, no próximo ano é que vou aprender italiano, no próximo ano é que vou deixar de fumar, no próximo ano é que me vou despedir daquele maldito emprego, no próximo ano é que vou dedicar mais tempo aos amigos e à família, e no próximo ano é que vou fazer isto e aquilo.
Contudo, na maior parte dos casos, o que acaba por suceder, é que os planos de fim ano ficam quase sempre por concretizar. Por assim ser, há até gente em jornais, revistas e redes sociais, que nos dá brilhantes conselhos sobre o modo como levarmos efectivamente avante os nossos planos para o futuro ano.
São conselhos que não servem para nada, pois mesmo muitos dos que os seguem à risca, acabam igualmente por não fazer coisa alguma do que pretendiam fazer.
Dito isto, aqui estamos nós, neste blog, para vos ajudar a todos, de forma a que não deixem absolutamente nenhum dos vossos planos para 2026 por concretizar. Como já acima dissemos, o que aqui hoje vamos fazer é um exercício de psicanálise.
Dito isto, o nosso conselho é simples e resume-se a isto: desistam. É esta é a nossa boa-nova deste Natal: a solução é desistir.
Se desistirem de fazer planos e de os tentar consumar, por consequência lógica, no ano de 2026 não deixarão um único dos vossos planos por realizar, pois logo à partida já não tinham nenhum.
Assim como assim, se a maior parte dos planos do final de cada ano ficam sempre por executar, para quê estarem a perder tempo com isso, a enganarem-se a vós próprios e a aborrecerem-se? Desistam de fazer e de concretizar planos e pronto, o assunto fica resolvido.
Melhor psicanálise do que esta, duvidamos que encontrem e, ainda por cima, é de graça. Pensem lá bem nisto, assim, só de uma penada, já resolvemos a maior parte das frustrações e angústias que eventualmente vos poderiam atormentar em 2026. Desistindo de planos para o ano, grande parte dos anseios e desassossegos não chegam sequer a existir. É ou não psicanálise da boa?
Poderíamos ficar já por aqui e terminarmos este texto, uma vez que a boa-nova está anunciada, contudo, continuamos para aqueles nossos leitores mais literatos e filosóficos, que gostam de perceber o porquê das coisas, e que necessitam de referências culturais e científicas para poderem formar uma opinião consolidada sobre o mundo e o que nele sucede. Assim sendo, vamos em frente.
Tendemos a encarar a desistência como uma falta de coragem ou de carácter, ou então como uma atitude inadequada e vergonhosa. De modo oposto, tendemos a valorizar, e até mesmo a idealizar, o levar as coisas até o fim, o concluirmos algo que planeámos em vez de o abandonarmos. Como já dissemos, a boa-nova que hoje vos trazemos, é que não ter planos ou desistir dos que eventualmente se possuem, é o caminho para a felicidade.
Talvez entre os nossos leitores, haja quem esteja céptico relativamente a esta nossa boa-nova, todavia, nós vamos continuar a argumentar em defesa da nossa tese.
Em boa verdade, desistir não é assim tão difícil, com efeito, todas as noites desistimos: desistimos da consciência, desistimos do pensamento, desistimos da vigília, desistimos do estado de alerta e desistimos da vida desperta.
Em resumo, os nossas mentes pedem-nos encarecidamente, ao final da cada dia, que desistamos, e que nos deixemos levar para um universo onírico, em que somos transportados por sonhos, que nem sequer são nossos, ou só são, na medida em que os sonhamos enquanto dormimos.
Na realidade, os sonhos não são verdadeiramente nossos, vêm sabe-se lá donde, neles acontecem-nos coisas bizarras e, não raras vezes, parecem-nos completamente incompreensíveis.
A conclusão de tudo isto é clara, a nossa mente sabe bem o que é desistir e não o toma como sendo algo vergonhoso ou revelador de falta de carácter. Desistir, para a nossa mente, é apenas uma forma de sonhar e descansar, e de assim se regenerar durante a noite, para posteriormente, ao amanhecer, começar uma outra viagem, um novo dia.
Normalmente, quando as pessoas dizem assertivamente que vão desistir de algo, geralmente estão a referir-se a algo como fumar, beber álcool, comer doces ou ingerir gorduras em excesso, ou ainda a um qualquer outro prazer do dia-a-dia.
Em geral, as pessoas só falam de forma positiva em desistir, relativamente a esse tipo de hábitos, que supostamente as prejudicam. Desistir, nesses casos, é visto como uma coisa boa, porém, e fora isso, a ideia de desistir, nunca é bem-vista.
Tanto assim é, que quando desistimos de algo, exceptuando os referidos pequenos prazeres dia-a-dia, necessitamos de nos justificar perante nós próprios e até perante outros.
Desistir não nos enche de orgulho, se desistimos é porque não conseguimos desenvolver todo o nosso potencial ou porque não alcançámos o nosso ideal, em resumo, desistir equivale a fracassar. Só que não, a nossa boa-nova, é precisamente a de que, desistir não é um sinal de fiasco.
Insistimos, as nossas mentes desistem diariamente de serem conscientes, e isso por si só, já nos devia levar a pensar que desistir não é uma coisa assim tão má como parece.
Mas mais do que isso, desistir é muitas vezes uma manifestação de maturidade. Com efeito, desistir é um indício de realismo, ou seja, significa que temos plena consciência daquilo a que chamamos "as nossas limitações ou limites".
Poder-se-ia muito bem dizer, que com muita frequência, desistir é evitar fazer-se uma triste figura.
“A Consciência de Zeno” é uma obra-prima da literatura italiana, escrita em 1923 por Italo Svevo. Nela relata-se a história de um homem neurótico de Trieste, que já com uma certa idade, narra as suas memórias sob o olhar de um psicanalista, contando-lhe as suas obsessões com o tabagismo, com o casamento, com os negócios e com as doenças.
Deitado num estreito sofá, Zeno apercebe-se que toda a sua história, a passada e a presente, se compõe de pequenos fracassos: o casamento com uma mulher que não aprecia, o trabalho que não lhe agrada e as inúmeras tentativas falhadas para parar de fumar.
Numa extensa confissão, ficamos a saber das angústias de Zeno: o vício do fumo, a incapacidade de lhe pôr cobro, o desdém da bela Ada pelos seus avanços e o inesperado casamento com a irmã desta, Augusta, os casos extraconjugais a que se entregou e a doença que acredita afligi-lo, mas que nenhum médico jamais conseguiu diagnosticar.
Largar o tabaco funciona em “A Consciência de Zeno” como uma metáfora para os planos de vida que o personagem quer concretizar: “Zeno fuma. Muito. Desde a primeira adolescência. Aos vinte anos descobre que odeia o tabaco e passa a aliar ao vício uma outra obsessão: a de largar o vício. Obsessão falhada e ela própria viciosamente circular, ou não fosse parte integrante do prazer e da culpa de fumar."
Zeno diz ao longo da sua vida, inúmeras vezes para si próprio, com toda a convicção do mundo: “Este vai ser o último cigarro”. Só que nunca o é. Essas constantes tentativas falhadas de deixar de fumar, fazem-no sentir um fracassado. No entanto, o que Zeno descobre ao narrar a sua vida, é a alegria de desistir.
Uma vez tendo desistido de concretizar os seus planos, Zeno passou a fumar à vontade, sem se obcecar com o ultimo cigarro: “A ciranda do último cigarro começou aos vinte anos e ainda hoje está a girar. As minhas resoluções são agora menos drásticas e, à medida que envelheço, torno-me mais indulgente para com as próprias fraquezas. Ao envelhecermos, sorrimos da vida e de todo o seu conteúdo. Posso assim dizer que, desde há algum tempo, tenho fumado muitos cigarros … que não serão os últimos.”
Tendo chegado a tal conclusão, que o melhor remédio era desistir não do tabaco, mas sim dos seus planos para desistir do tabaco, Zeno sente-se pela primeira vez em muitos anos, livre das suas doenças e obsessões, vendo então que a sua vida podia afinal ser “mais bela do que a dos assim chamados sãos".
Aqui chegados, é de crer que muitos dos que nos lêem, já terão chegado à conclusão científica e filosófica, de que desistir não equivale a uma derrota, que é sim uma boa-nova, como inicialmente anunciámos.
Desistimos quando acreditamos que não podemos mais continuar como estamos, nesse sentido, desistir é um prelúdio, uma condição prévia para que algo de diferente aconteça.
Desistir é portanto uma forma de antecipação, um tipo de coragem, é um sinal da morte de um desejo, dos planos que tínhamos, mas, simultaneamente, um abrir de espaço para outros desejos e planos. Desistir é, em outras palavras, uma tentativa de construir um futuro diferente.
Na época natalícia, é hábito dos críticos literários fazerem balanços sobre quais foram os melhores livros do ano. Em muitas dessas listas consta o livro de Adam Phillips, “Desistir”.
Adam Phillips é actualmente um dos mais reconhecidos psicanalistas, críticos literários e intelectuais públicos no Reino Unido. Já escreveu cerca de vinte e cinco livros sobre psicanálise, literatura e cultura, e é colaborador habitual da London Review of Books, do Observer e do New York Times.
Em dado momento do livro “Desistir”, lemos o seguinte: “Heróis e heroínas são pessoas que não desistem; podem até recuar às vezes, mas, no fim, perseveram. E, como veremos, os heróis trágicos são nossos exemplos catastróficos da incapacidade de desistir (o que há de heroico no heroísmo é, precisamente, a resistência a desistir, ou talvez a fobia da desistência)”.
E com esta terminamos, se alguém se quiser armar em herói ou heroína, e conceber altos planos para 2026 e deles não quiser desistir, daqui a um ano cá estaremos para ver quem tinha razão.







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