É nesta época do ano, em que faz frio, chove e anoitece cedo, que nos lembramos dessa cidade distante, a que há séculos chamaram São Petersburgo. Não que por cá, a invernia seja tão gélida como o é por lá, mas ainda assim, o clima agreste faz com que cresça em nós um certo desconforto espiritual, todo ele feito de noite e de névoa, que parece vindo dessa antiga capital da Rússia Imperial.
É estranho estarmos em Lisboa, uma cidade feita de sol, de luz e de um rio afável que quase parece o mar, e lembrarmo-nos dessa fantasmagórica urbe russa, situada lá muito a norte, mesmo perto do glacial Mar Báltico.
Bem sabemos que hoje em dia, a Rússia não está lá muito bem vista e que dela só se diz mal. No entanto, e apesar disso, há tanto de interessante para se dizer sobre essa cidade russa situada lá no fim do mundo, a que hoje todos chamam São Petersburgo, mas à qual em tempos, já muitos chamaram Leninegrado.
São Petersburgo foi inventada do nada, para corresponder à vontade de um Czar, a saber, Pedro, o Grande. Num sítio junto ao Báltico, onde apenas havia pântanos, gelo e um rio chamado Neva, quis o Czar que se erguesse uma cidade que rivalizasse com as mais poderosas da Europa, e que fosse a mais bela de todas as que se conheciam.
Pedro, o Grande, mandou vir de Itália e de França arquitectos, artistas e urbanistas, deslocou largos milhares de camponeses da mais profunda Rússia, e assim nasceu a que seria a imponente capital dos czares.
Facto importante, é que defronte dessa imensa cidade havia um mar navegável, uma porta de saída para o mundo, que a Rússia, antes de São Petersburgo ter sido erguida, jamais tinha possuído.
Uma bela cidade erguida do nada, com uma esplendorosa arquitectura barroca, atravessada por canais onde corre o rio Neva, com magníficas pontes, gloriosos palácios e várias catedrais.
Todavia, uma bela cidade que desde o início, os seus habitantes sentiram como estranha, talvez porque lhes parecesse fruto de uma ambição desmedida, e por isso algo irreal. Sentiam o seu encanto como ilusório e artificial, como se em São Petersburgo nada fosse mesmo verdadeiro.
São Petersburgo é na verdade, uma cidade para seres fantasmagóricos. Logo após a sua fundação, começou a correr por toda a cidade, uma lenda que conta uma história de ambições, artifícios e ilusões, “A Dama de Espadas”.
A história tornou-se tão famosa, que o poeta nacional russo, Alexander Pushkin, a transformou num conto, e posteriormente, Tchaikovski transformou-a numa ópera.
Numa festa, um jovem revela que a sua avó, uma velha Condessa, na juventude, aprendeu o segredo das três cartas (3-7-Ás), para vencer os jogos. No entanto, prometeu que não o revelaria a ninguém. Hermann, um oficial sem escrúpulos e viciado no jogo, fica obcecado com o segredo, vendo-o como a chave para a sua futura fortuna.
Para conhecer o segredo, Hermann manipula a jovem e ingénua Lizaveta Ivanovna, a dama de companhia da Condessa. Envia-lhe cartas de amor e ganha a sua confiança. Lizaveta, apaixonada, cede-lhe a chave do quarto da Condessa. Em certa noite, Hermann invade o quarto e implora à velha senhora que lhe revele o segredo das cartas. A Condessa, apavorada, morre de susto.
Depois disso, Hermann é assombrado pelo fantasma da Condessa. Ao jogo, ele aposta e a sua carta é a Dama de Espadas, mas esta vira-se e mostra-se como a figura da Condessa. Perseguido pelo fantasma da Condessa, Hermann acaba por cair na loucura e na ruína.
“Amo-te, urbe e obra de Pedro,
Amo teu rigor e beleza,
Tua corrente majestosa,
Neva, tuas margens de pedra...”
Os versos acima são de um longo poema de Alexander Pushkin, “O Cavaleiro de Bronze”. Na narrativa que dá título ao livro, contemplamos uma São Petersburgo onírica, onde as estátuas ganham vida, e mitos, fábulas e realidade são indistinguíveis.
Em “O Cavaleiro de Bronze”, Pushkin celebra a fundação de São Petersburgo por Pedro, o Grande, uma cidade "esconjurada do pântano" pela vontade autocrática, ligando-a ao destino da Rússia.
No poema, a estátua de bronze de Pedro, o Grande, personifica um monarca implacável, símbolo da força e da grandeza da Rússia, mas também da opressão.
A história centra-se em Eugene, um jovem pobre e humilde, que tão-somente procura uma vida simples e com amor, mas que é destruído pela força avassaladora do poder estatal.
No fim, Eugene, louco e o desesperado, confronta a estátua de Pedro, o Grande, com a sua má sorte de pequeno homem derrotado pela cidade.
Abaixo uma fotografia da estátua de Pedro, o Grande, que Catarina, a Grande, mandou erguer bem no centro de São Petersburgo.
“A Dama de Espadas” e o “Cavaleiro de Bronze” são duas histórias fundadoras da identidade de São Petersburgo, não há por lá ninguém que não as conheça, sendo que, as crianças as aprendem desde cedo nas escolas.
Alexander Pushkin, que dessas narrativas fez um conto e um poema, tornou-se ele próprio um fantasma e uma lenda da cidade. Pushkin e a sua esposa, Natalya Goncharova, eram regulares frequentadores da corte. Em 1837, diante dos boatos, cada vez mais insistentes, de que a sua esposa teria um escandaloso caso extraconjugal, Pushkin desafiou o dito amante para um duelo. Mortalmente ferido pelo oponente, faleceria dois dias depois.
Aqui vemos Alexander Pushkin junto ao rio Neva, tendo por trás de si, a sua casa em São Petersburgo.
Como já se terá percebido, São Petersburgo é um sítio de lendas, mitos e fantasmas.
Ivan Gontcharov escreveu nessa cidade um dos mais peculiares romances de sempre, “Oblamov”.
A história relata-nos a vida do jovem aristocrata Oblamov. Habituado de pequeno a ter uma corte de criados que lhe satisfaziam todos os desejos e necessidades, agora, já passados os trinta anos de idade, e a viver num apartamento em São Petersburgo, Oblamov é incapaz de fazer seja o que for.
Os seus dias são passados na cama, enrolado num velho roupão, rebolando de um lado para o outro. De quando em vez traça grandiosos planos, mas nunca os põe em prática.
Malgrado os esforços dos seus amigos e conhecidos para que faça qualquer coisa, o apelo do sono tolda-lhe a vontade e Oblomov acaba mesmo por trocar o seu grande amor pelo conforto do colchão.
O livro de Ivan Gontcharov é um épico da preguiça, o mesmo é dizer, uma epopeia da pantufa. À questão “Ser ou não ser”, Oblamov respondeu “não”. O mais que faz, é ir da cama até ao sofá, esforço que o deixa imediatamente exausto.
No fundo, o personagem Oblamov é mais um desses seres fantasmagóricos, derrotados e sem vontade, que são tão próprios da história de São Petersburgo.
É como se a vontade desmesurada de erguer São Petersburgo do Czar Pedro, o Grande, tivesse esgotado as vontades dos que depois nessa cidade viveram.
Raskólnikov, um jovem estudante, pobre e desesperado, deambula pelas ruas de São Petersburgo e decide cometer um crime, que tentará justificar com uma teoria: os grandes homens, como César, Napoleão ou Pedro, o Grande, foram assassinos absolvidos pela história.
É esta a história de “Crime e Castigo” de Dostoievski, uma das maiores obras da literatura universal.
Raskólnikov é ex-estudante de Direito, um homem extremamente pobre que vive angustiado pelo desejo de fazer algo importante. Ele divide a humanidade entre os indivíduos vulgares e os extraordinários, sendo que, aos segundos lhes deve ser permitido fazerem o que pretenderem, sem terem de prestar contas a ninguém.
Seguindo esse preceito, Raskólnikov planeia e concretiza, a morte de uma agiota.
Apesar de investigar Raskólnikov, a polícia acaba por prender um inocente que se intitulou culpado devido à pressão que sofria.
No entanto, mais tarde, Raskólnikov confessa o crime que cometera. A confissão deveu-se à enorme influência de Sónia, que lhe mostrou que ele não fazia parte do grupo dos indivíduos extraordinários, aqueles que ele considerava capazes de cometerem quaisquer crimes ou infringir regras sem sentirem culpa alguma.
Em síntese, Raskólnikov percebeu que não possuía a determinação e a força de vontade de César, Napoleão ou Pedro, o Grande.
Dostoievski e São Petersburgo são inseparáveis: a cidade não é só cenário, mas um personagem vital nas suas obras. A sua atmosfera sombria, os seus becos, neblinas e a dualidade entre a grandeza e a miséria, refletem a experiência do próprio escritor que nela habitou quase toda a sua vida. Abaixo, Dostoievski deambulando por São Petersburgo.
Anna Akhmátova nasceu em 1889, numa noite de São João, próximo de Odessa, às margens do mar Negro. Viveu por um tempo em Kiev, contudo, a cidade que a viu erguer-se poeta foi São Petersburgo, o sonho descomunal de Pedro, o Grande.
Anna Akhmátova e São Petersburgo (nessa época rebaptizada Leningrado pelos soviéticos) são indissociáveis. A cidade foi palco do nascimento, formação, inspiração e tormento da poeta, sendo o cenário da sua vida e obra.
O seu primeiro marido e pai do seu filho, foi morto por o seu suposto envolvimento numa conspiração contra os bolcheviques.
O seu filho Lev foi preso em 1938 e Anna Akhmátova queimou então todos os seus cadernos de poemas. A partir daí, ela memorizou tudo o que escreveu e recitava a sua poesia apenas entre amigos de confiança. A poeta sabia que seu filho havia sido preso, por causa dos seus versos pouco convencionais.
Enfrentou o terror de Estaline e a perseguição dos seus amigos escritores: O poeta Ossip Mandelchtam morreu a caminho de um gulag, enquanto a poeta Marina Tsvetáieva se enforcou e Borís Pasternak foi perseguido até a morte.
À sua volta, todos os que lhe eram mais queridos, eram agora fantasmas. Entre 1935 e 1940, compôs o poema “Requiem”, a sua obra mais famosa, na qual lamenta a execução do primeiro marido, Gumilióv, e as prisões do terceiro marido, Nikolai Púnin, e do filho Lev.
“Passei dezassete meses em filas de prisões em Leningrado (São Petersburgo). Uma vez, alguém me ‘identificou’. Então, uma mulher que estava atrás de mim, azul de frio, e que com certeza nunca tinha ouvido meu nome, acordou daquele transe característico de todos nós e perguntou-me ao ouvido (ali, todos falavam em sussurros): “Poderá descrever isto?”. E eu respondi: “Posso’”. Então algo semelhante a um sorriso atormentado passou por aquilo que um dia foi seu rosto.”
Vejamos alguma passagens de “Requiem”:
Levaram-te embora ao amanhecer.
Atrás de ti, como quem acompanha um carro fúnebre, eu segui.
No quarto às escuras, as crianças soluçavam
e a vela gotejava diante do ícone.
Teus lábios estavam gelados como uma medalhinha.
Do suor mortal em tua fronte jamais me esquecerei.
Como as viúvas dos Striéltsi, eu também
irei gritar diante das torres do Kremlim…
(…) Não, esta não sou eu, é uma outra qualquer que sofre.
Não posso suportar o que aconteceu,
deixem que uma negra mortalha o cubra
e que levem embora os lampiões de rua…
Anoitece…
(…) Há dezessete meses choro,
chamando-te de volta para casa.
Já me atirei aos pés do teu carrasco.
És meu filho e meu terror.
As coisas confundem-se para sempre
e não consigo mais distinguir, agora,
quem é fera, quem é homem,
e quanto terei de esperar até a tua execução.
Só me restam flores empoeiradas
e o tilintar do turíbulo e pegadas
que levam de lugar nenhum a parte alguma.
E bem nos olhos me olha,
com a ameaça de uma morte próxima,
uma estrela enorme.
Abaixo, a poeta Akhmátova, também conhecida como Anna de todas as Rússias.
E pronto, deixemos São Petersburgo, essa cidade bela, cruel e gélida, e regressemos ao local de início deste texto, essa Lisboa feita de sol, de luz e de um rio afável que quase parece o mar.
Bart Blair é chefe de uma editora britânica com negócios na União Soviética. Bart vive em Lisboa, numa pequena casa em Alfama, com o Tejo por defronte. Os serviços secretos britânicos requisitam-no para uma missão, ir à Rússia, para de lá secretamente trazer um manuscrito de Dante, um famoso cientista soviético.
Bart viaja para São Petersburgo, onde se encontra com Katya Orlova, amiga e ex-amante de Dante, para esta lhe tentar entregar o manuscrito. Bart e Katya envolvem-se romanticamente, e após múltiplas venturas e desventuras, ambos conseguem fugir e chegar a Lisboa, onde recomeçam as suas vidas.
Esta é a história de “A Casa da Rússia”, um romance de espionagem de John le Carré publicado em 1989, que foi depois adaptado ao cinema.
Terminamos hoje, com os locais de Lisboa, nos quais foi filmada a película, “ A Casa da Rússia”.









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