Basta olhar para as prendas de Natal que crianças, adolescentes e jovens recebem, para se perceber que os grandes mitos da antiguidade clássica circulam entre nós, pois a sua presença é constante em jogos de computador e de PlayStation.
O facto é até paradoxal, pois exceptuando esse contexto, os grandes mitos da antiguidade clássica parecem estar algo esquecidos.
Em boa verdade, neste nosso tempo, tudo está um tanto ou quanto esquecido. Com efeito, até as notícias de há apenas um mês, parecem referir-se a acontecimentos de um passado já muito distante, do qual agora já ninguém se recorda.
Os escândalos tremendos e os acontecimentos bombásticos de há cerca de um mês, foram rapidamente abandonados no sótão das memórias e velozmente substituídos pelos mais recentes escândalos tremendos e acontecimentos bombásticos, que por sua vez serão também apressadamente engolidos pela vertigem deste nosso tempo.
Mais abaixo um fresco do Palácio da Ajuda, no qual está representada a Fama, ou Rumor, como era denominada pelo poeta Ovídio. A Fama era uma divindade que habitava no centro do mundo, nos confins da terra, do céu e do mar. No seu palácio com milhares de orifícios, captava tudo que se dizia e propalava-o de imediato.
Acompanhada pela credulidade, o erro, o terror, e os falsos boatos, a Fama percorria o mundo inteiro. Na representação clássica, possuía múltiplos olhos e ouvidos, que tudo viam e ouviam, e outras tantas bocas para o divulgar.
É frequentemente associada a asas e a uma trombeta ou corneta, o que tem a sua lógica pois por um lado, os boatos, os mexericos, os escândalos e as falsas notícias como que voam, por outro, fazem-se sempre anunciar de forma bastante estridente e com grande alarde.
Os mitos da antiguidade clássica, mesmo que esquecidos e apenas lembrados em jogos de computador e de PlayStation, têm muito para nos contar e são verdadeiramente úteis para os dias de hoje.
As divindades mitológicas tinham em suas mãos, o destino dos homens e o curso do mundo. Os deuses, semideuses e heróis, regiam as forças da Natureza e do Cosmos, e percebermos como o faziam, o que sentiam e o que os movia, é algo de precioso para compreendermos a actualidade.
Há nas mitologias antigas, muito mais sabedoria do que em todas as redes sociais, comentários, notícias e telejornais, já veremos porquê.
Não é muito difícil encontramos deuses, semideuses e heróis, seja por Lisboa, seja pelo resto do país. Nos próximos tempos procuremos por alguns deles, sendo que hoje, neste presente texto, iniciaremos essa nossa busca pelo Palácio da Ajuda.
Se visitarmos o Palácio da Ajuda encontraremos várias figuras mitológicas, como por exemplo esta abaixo, em que vemos Cronos devorando um dos seus filhos, enquanto Reia, segura uma outra das crianças no braço esquerdo.
A figura de Cronos é essencial para compreendermos o nosso tempo, este em que vivemos. Os gregos antigos viam Cronos como o titã do tempo, aquele que continuamente devorava os seus filhos: os segundos, minutos, semanas, meses e anos.
O apetite de Cronos (o tempo) era insaciável, até que Zeus o deteve. A partir desse instante, o tempo deixou de decorrer sem fim tudo devorando à sua passagem, e passou a ter uma ordem, um sentido e um significado.
Vendo as notícias nos telejornais e os comentários nas redes sociais, sentimos que estamos perante uma situação equivalente à de quando Cronos continuamente devorava os seus filhos, pois os acontecimentos sucedem-se em catadupa, sem que consigamos dar-lhe uma qualquer ordem, sentido ou sequer um significado.
Na verdade, o que o nosso tempo necessita, é que um novo Zeus detenha a torrente de acontecimentos e possamos perceber a ordem, o sentido e o significado do que actualmente sucede em nosso redor, neste mundo em que vivemos.
Algo de profundamente actual, que parece ser inédito na história da humanidade, é a crescente infantilização da sociedade. Desde miúdos a graúdos, todos parecem ser muitos mais infantis, do que eram os que tinham as mesmas idades há umas décadas atrás.
São muitos os mitos antigos que nos falam de amadurecimento. É disso que nos fala por exemplo, a história de Eros Psique, que também podemos encontrar numa das salas do Palácio da Ajuda
Psique era uma princesa tão bela, que todos a vinham contemplar. Era mais venerada do que a deusa do amor, Afrodite, que andava indignada por uma mera mortal receber tantas honras. Os templos de Afrodite esvaziaram-se, e por consequência disso, a deusa decidiu vingar-se.
Afrodite pediu ao seu filho, Eros, que atingisse Psique com uma das suas flechas, de modo a que esta se enamorasse por um monstro. Contudo, ao ver Psique, Eros apaixonou-se por ela e decidiu não cumprir o que a sua mãe lhe tinha pedido, ou seja, não a atingiu como uma das suas setas.
Pela noite, oculto no escuro, Eros amou-a, recomendando-lhe insistentemente, que jamais tentasse vê-lo para que ninguém descobrisse que tinha desobedecido. Durante largo tempo, Psique sentiu-se a mais feliz das mulheres, no entanto, numa noite, enquanto Eros tranquilamente dormia, Psique pegou numa lamparina e quis vislumbrar o belo rosto do seu amado.
Emocionada com a descoberta, deixou que uma gota de óleo caísse da lamparina sobre Eros, o que fez com que este despertasse sobressaltado, se fosse embora, e não mais voltasse.
Após muitas venturas e desventuras, no fim do mito, Eros e Psique, acabam por se unir, sendo também essa uma lição muito útil para os nossos dias.
O significado do mito centra-se na união entre o Amor (Eros) e a Alma (Psique), simbolizando o processo de amadurecimento humano que busca uma plenitude, na qual o desejo, a força vital e a paixão, se unem à alma ou à mente, ou seja, amadurecer é procurar um estado em que se alcance um equilíbrio entre o que desejamos (Eros) e o que somos (Psique).
A lenda de Leda e o cisne, conta-nos a história de uma rainha, Leda, que foi seduzida e acabou grávida de um cisne, que na realidade era Zeus, o rei dos deuses do Olimpo, que por ela se terá apaixonado.
Conforme o mito, Zeus encontrou-se com a amada, na mesma exacta noite em que Leda se encontrou também com seu marido, o rei Tíndaro de Esparta. O duplo encontro levou à formação de dois ovos de cisne, que foram chocados por Leda. Assim sendo, ela teve descendentes que eram um misto de mortais e de divindades.
Sigmund Freud via o pescoço o cisne como um símbolo fálico, e a união entre o cisne e Leda como simbolizando uma primeira experiência sexual. A narrativa reflecte uma experiência que, para Freud, é central na formação e amadurecimento da psique (alma/mente).
Nesse contexto, tal como o mito de Eros e Psique, também este é um relato sobre o amadurecimento, as suas venturas e desventuras. Em nosso entender, talvez fosse mais útil aos jovens de hoje iniciarem-se no entendimento do complexo sexo através de mitos antigos, do que através da internet.
Leda e o Cisne também podem ser vistos no Palácio da Ajuda.
Ainda no mesmo Palácio da Ajuda, podemos igualmente contemplar uma tapeçaria onde se celebra o triunfo de Minerva, sendo que nela se retrata a deusa romana da sabedoria e da guerra, vencendo os vícios e a ignorância.
Minerva é vista como um símbolo de virtudes como a Justiça, a Temperança e a Força. A deusa é associada à sabedoria, à estratégia e às artes, o seu "triunfo" simboliza a superioridade do intelecto e da virtude, e a vitória da razão, da moralidade e da ordem sobre a ignorância e a ruindade.
Em resumo, não há como discordar que Minerva faz muita falta nos dias que correm.
O complexo de Atlas é uma das doenças mentais mais comuns da vida moderna, manifesta-se como um esgotamento físico e mental, resultante de tudo se querer fazer sozinho, pois possui-se dificuldade em delegar, o que acaba por impedir o desenvolvimento saudável do próprio e dos outros.
Quem sofre de o complexo de Atlas, tem tendência a assumir tarefas e problemas alheios como se fossem seus, e não deixar que ninguém o ajude nos seus, é alguém que quer carregar o mundo inteiro às costas.
O mito de Atlas está relacionado com o excesso de incumbências, obrigações e tarefas que aceitamos, e com não sabermos reconhecer os nossos limites.
Atlas era um titã, que foi condenado por Zeus a sustentar os céus para todo o sempre.
“Olha, até Atlas está bem aflito,
e a custo sustém nos ombros o eixo incandescente do céu”.
(Ovídio, Metamorfoses, Livro II)
Abaixo uma imagem de “Atlas e Europa", na Sala de D. João VI, no Palácio Nacional da Ajuda.
De muitos outros deuses, semideuses, heróis e mitos antigos vos poderíamos falar, no entanto hoje ficamos por aqui, um dia destes prosseguiremos.








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