Por vezes há gente que morre discretamente, tal e qual como viveu. É esse o caso de Gil de Carvalho, que faleceu na passada quarta-feira. Nasceu em Lisboa em 1954 e não seria descabido chamar-lhe um poeta secreto, não se desse o caso de ele nunca falar da sua poesia e de jamais ter tido a ousadia de se auto-intitular poeta.
Esqueçamos por hoje que Gil de Carvalho escreveu a sua própria poesia, façamos de conta que ele não era poeta, todavia, recordemos o muito que se dedicou a traduzir poemas vindos do Oriente.
Não o fazia com objectivos didácticos ou de divulgação cultural, mas sim porque sentia em si a presença da Ásia. Tinha um olhar asiático, ou seja, era consciente de que as realidades nunca são lineares, nem são igualmente facilmente descritíveis.
O que mais por aí há nos dias que correm, é gente linear, que vê tudo e todos em seu redor também de forma linear. É uma gente nada discreta essa, na realidade até fala muito alto, de tal modo que as suas verdades lineares nos entrem pelos tímpanos adentro.
O que mais também por aí há nos dias que correm, é gente que descreve tudo e todos de um modo fácil, usando palavras corriqueiras, frases vulgares, e que não tem a mínima sensibilidade para as nuances, para os tons e matizes das realidades que supostamente descrevem.
Em síntese, essa gente, linear e sem a menor sensibilidade, não têm um olhar afim ao do Oriente, nada possuindo da delicadeza, da suavidade e da graciosidade asiática.
Disse uma vez um poeta chinês, “O mais perfeito dos sons humanos é a palavra. A poesia é a forma mais perfeita da palavra”. A poesia é uma escrita que não se limita a uma mera e fácil função designativa, pois empenha-se em dar às palavras ritmos, rimas, ambiguidades, tons, nuances, matizes, silêncios e vazios.
Se assim o é para a poesia em geral, mais ainda o será para a poesia oriental, a tal que Gil de Carvalho tantas vezes traduziu. Viajemos então até à China e à poesia de Li Ch’ing-chao (1084-1150), que foi vertida para português pelo Gil de Carvalho.
Parou o vento. Até a poeira é perfumada.
Já é tarde. Não me apetece pentear-me.
As coisas estão aqui mas ele o homem não – tudo acabou.
Quero falar – mas correm-me as lágrimas
Ouvi dizer que no Regato Duplo é ainda Primavera.
Gostaria de ir até lá andar numa barca leve
Mas tenho receio que barca tão frágil
Não suporte o peso de tanto sofrimento.
Nada no poema acima é linear, sendo a descrição do sofrimento toda ela feita de matizes e silêncios, na realidade, nem sequer sabemos a causa da dor, no entanto, percebemos perfeitamente daquilo que fala, a saber, de um sentir humano que atravessa os tempos e os lugares. Algo vindo do longínquo oriente e de um século diferente, mas que ecoa nas nossas mentes e almas, de ocidentais do século XXI.
Li Shangyin (813–858), um poeta da dinastia Tang tardia, é conhecido pela obscuridade semântica dos seus poemas. Mesmo tendo já decorrido mais de mil anos desde o tempo em que Li Shangyin escrevia poesia, ainda assim, é possível compreendê-lo. Vejamos como Gil de Carvalho traduziu um seu poema:
SEMPRE DIFÍCIL, encontrarmo-nos, difícil, sempre separarmo-nos.
E murcha cada flor no vento que declina.
Terminado que é o fio, morre na Primavera o bicho-da-seda.
A vela seca as lágrimas – quando já é cinza.
De madrugada, o espelho faz-me triste, mudos nele os meus cabelos.
A voz que canta na noite, acorda o frio sentido do luar.
Daqui não é longe… daqui à Ilha dos Imortais,
Pássaro azul, depressa, gostava de lhe dar uma espreitada.
Portugal foi o primeiro país ocidental a estabelecer contacto com o Oriente, contudo, por cá poucos se recordam disso, a não ser para desfraldar bandeiras e entoar loas à grande gesta dos chamados heróis do mar, e ao nobre povo valente e imortal.
É um quanto ou tanto tosco e muito revelador do carácter linear e pouco sensível de algumas gentes de Portugal, que tendo nós as mais ancestrais relações de ocidentais com a Ásia, actualmente pouco ou nada saibamos da sua cultura.
Mais a mais que a cultura asiática é toda ela feita de maravilhas e encantamentos, e certamente teríamos muito a aprender com as suas subtilezas. Vejamos por exemplo, alguns versos de um poema que nos descreve um palácio, e que terá sido escrito sensivelmente por volta do ano 300 a.C.
O palácio é de escamas,
Uma de dragão à entrada,
Portas de concha, púrpura,
Quartos em pérola.
À primeira vista, as palavras parecem simples, porém, façamos uma análise verso a verso, para vermos o quão subtil é o poema.
O primeiro verso, “O palácio é de escamas”, remete-nos para um edifício envolvido pela natureza, talvez feito de madrepérola ou de escamas de peixe, com um brilho incandescente.
O segundo verso, “Uma de dragão à entrada”, lembra-nos que o dragão é um símbolo de poder e de sorte, que guarda a entrada dos lugares sagrados.
O terceiro verso, “Portas de concha, púrpura”, salienta que as conchas indicam um ambiente aquático, enquanto a cor púrpura nos remete para a realeza e para o mistério.
O quarto verso, “Quartos em pérola”, coloca em destaque que a pérola é um símbolo de pureza, sabedoria e beleza, indicando que os interiores do palácio são de uma opulência natural e de uma enorme delicadeza.
Em síntese, com apenas quatro versos, temos uma bela e sensível descrição, plena de tons e matizes, e de outras subtilezas.
Abaixo uma obra de Utagawa Kuniyoshi (1798-1861), intitulada “Palácio do Dragão, Rei Dragão Apresenta Três Presentes a Tawara Tōda Hidesat"
As gravuras apresentam-nos a história do herói conhecido como Tawara Tōda, que é recebido no Palácio do Dragão, onde lhe são oferecidos três tesouros mágicos como recompensa por derrotar uma centopeia gigante. Os três presentes são os seguintes: uma armadura, uma espada e um saco de arroz que jamais se esvazia.
Veja-se agora o exemplo do poema “Queixa das Escadas de Jade” de de Li Bai (701-762). Poderíamos lê-lo de um modo literal, só que se o fizéssemos, escapar-nos-ia a essência da poesia.
Sabemos, porque lemos e pesquisámos, que o poema nos fala de umas escadas de jade que dão acesso ao harém imperial, mas que também podem ser a pele branca e macia de uma mulher. “Branco orvalho” são as lágrimas do rosto ou podem também indicar que a mulher já não é jovem. E “persiana de cristal” é uma cortina feita de bolas de cristal, característica dos aposentos do harém, ou pode igualmente ser uns olhos marejados de lágrimas.
Aqui fica a tradução de Gil de Carvalho:
Nas escadas de Jade cresce
Ainda o branco orvalho,
O frio que toda a noite
Encharcou umas meias de seda.
Ela desce
A persiana de cristal
E contempla a Lua
–
Envidraçada – do Outono
Os duplos ou mesmo triplos sentidos do poema, são uma recusa em se ser linear ou literal, e são simultaneamente uma recusa em se fazer descrições fáceis.
Terminamos com um poema dúbio, cujas interpretações são inúmeras:
Solitários montes, ninguém à vista,
Ecos somente de vozes humanas.
Um sol tardio entra no bosque fundo,
Brilha de novo o verde musgo.
Logo a propósito do primeiro verso, podemos perguntar-nos quem está sozinho. O poeta no monte sem ver ninguém? Ou os montes que se encontram isolados e solitários? Não se sabe.
O que se sabe, é que simplificar a realidade é sempre um erro grave, e talvez seja este o maior ensinamento que nos pode dar a poesia oriental.





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