Corria o ano de 1983, quando José Afonso subiu aos palcos dos coliseus de Lisboa e do Porto para os seus últimos concertos. Ambas as salas esgotaram, pois o cantor era imensamente popular. Tão popular que o concerto de Lisboa foi inclusivamente transmitido pela RTP, tornando-se um marco na memória coletiva portuguesa.
Neste final de 2025, o Teatro Experimental do Porto inspirou-se nesses míticos concertos de 1983 para realizar um espectáculo multidisciplinar que entrelaça música, teatro, performance e poesia.
O espetáculo evoca o adeus simbólico que esses concertos de 1983 representam, não só o adeus do cantor, mas também o fim de uma era. Com a despedida de José Afonso, Portugal dizia adeus às utopias de Abril e preparava-se para entrar na CEE e ser um país igual aos outros.
No espectáculo há textos originais de jovens escritores actuais, como Lígia Soares, Marta Figueiredo, Miguel Cardoso, Rui Pina Coelho e Susana Moreira Marques, que nos contam como é viver nos dias de hoje, ou seja, como é existir sem utopias, fazendo o que se tem a fazer, indo levando para a frente os dias que passam e os nossos quotidianos.
No link abaixo, Gonçalo Amorim, o encenador, explica-nos as razões que levaram o Teatro Experimental do Porto a querer reviver os concertos de 1983:
O espectáculo “José Afonso, ao vivo nos Coliseus, 1983” esteve recentemente em cena no Porto e também em Lisboa, mas vai também passar pela Galiza, e mais concretamente por Santiago de Compostela.
Não é um acaso que este espectáculo passe pela Galiza, pois como uma vez alguém disse, a Galiza era a pátria espiritual de José Afonso.
Diz-se que foi lá que terá cantado pela primeira vez em público a canção nascida de um poema dedicado à Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, e escrito em Maio de 1964, de seu nome Grândola vila morena.
José Afonso tinha uma forte ligação à Galiza, às suas gentes e à sua cultura, ligação que manteve viva até à sua morte. Tal não é estranho pois as letras das suas canções têm claras influências da poesia galaico-portuguesa medieval.
José Afonso acreditava que até mesmo poemas eruditos vindos de séculos distantes, podiam ser trazidos ao presente e tornarem-se populares entre “a malta” que escutava as suas canções.
Era uma crença utópica essa a de Zeca, a fé que tinha no povo e na sua capacidade para compreender e sentir a beleza e complexidade de um poema com largas centenas de anos.
Esse tempo em que José Afonso musicava poesia galaico-portuguesa, é muito distinto do de hoje em que a maior parte dos músicos ditos populares se limitam a usar frases pobres e palavras banais. Actualmente há medo de que o povo não entenda qualquer coisa que seja bela e complexa, não há uma fé como a do Zeca, faz-se o que se tem a fazer, leva-se para a frente os dias que passam e vive-se quotidianamente.
A poesia galaico-portuguesa divide-se em cantigas de Amor, de Amigo, de Escárnio e Maldizer. José Afonso usou essa tradição trovadoresca em algumas das suas canções. Veja-se por exemplo, o poema "Bailia das avelaneiras", que terá sido escrito pelo galego Airas Nunes algures no século XIII, e que em 1969 foi musicado por José Afonso.
Bailia das avelaneiras é uma das mais célebres cantigas de amigo que os Cancioneiros nos transmitiram. As avelaneiras eram árvores associadas em muitas culturas antigas a ritos nupciais. A cantiga fala-nos de um convite de uma amiga às outras duas para que as três se juntem e dancem sob as avelaneiras que estão “frolidas”, o que significa que estamos na primavera, talvez em abril.
As raparigas são "velidas", o que em galaico-português significava que eram belas e formosas. Na segunda estrofe, aparece-nos o vocábulo “louçana”, que nos remete para uma ideia de graciosidade advinda do tom de pele, claro e brilhante como a louça. Chamamos igualmente a atenção para a maliciosa expressão "mentr´al nom fazemos".
Bailemos nós já todas tres, ai amigas,
so aquestas avelaneiras frolidas
e quen fôr velida, como nós, velidas,
se amig' amar,
so aquestas avelaneiras frolidas
verrá bailar.
Bailemos nós já todas tres, ai irmañas,
so aqueste ramo d' estas avelañas
e quen fôr louçaña, como nós, louçañas
se amig' amar,
so aqueste ramo d' estas avelañas
verrá bailar.
Por Deus, ai amigas, mentr' al non fazemos,
so aqueste ramo frolido bailemos
e quen ben parecer, como nós parecemos,
se amig' amar,
so aqueste ramo so que nós bailemos
verrá bailar.
Ouçamos então como José verteu um poema do século XIII, numa canção popular do seu tempo:
Num outro momento, em 1979, José Afonso musicou e cantou uma canção popular galega, “Achégate a mim, Maruxa”, a letra reza assim:
Achégate a mim, Maruxa
chégate ben, moreniña
quérome casar contigo
serás miña mulleriña
Adeus, estrela brilante
compañeiriña da lua
moitas caras teño visto
mais como a tua ningunha
Adeus lubeiriña triste
de espaldas te vou mirando
non sei que me queda dentro
que me despido chorando
Ouçamo-la na voz de José Afonso:
Fala-se muito da contribuição de José Afonso, como compositor, para a renovação da música popular portuguesa, contudo, tem-se falado menos da sua poesia.
É uma poesia feita para ser cantada e para servir uma canção. As palavras estão subordinadas à música, a sua razão é servir a melodia. Todavia, se ouvirmos bem, a sua poesia dá um outro sentido e dimensão à música.
A sua poesia vem da tradição trovadoresca, das suas repetições, dos seus paralelismos, das trovas e dos cantares de amigo. As letras falam de lacraus e de licranços, de bruxas e de cavaleiros à porta de uma hospedaria. É um imaginário que vem das canções de gesta e dos rimances de cavalaria, mas igualmente dos contos que ouvia, em criança, junto à lareira, em noites de invernia.
Vem também do sul e do azul, porque ele era como a cigarra e precisava do Verão, do Alentejo, do Algarve, das planícies, das areias, do mar e claro, da sombra de uma azinheira.
Estamos portanto perante a verdadeira música popular, aquela que é adoptada pelo povo por estar em consonância com a sua maneira de pensar e sentir, com o seu modo de conceber o mundo e a vida.
Quando o povo ouviu José Afonso pela primeira vez, imediatamente as suas canções a todos pareceram familiares. Assim foi porque vinham lá do fundo, das raízes mais antigas, essas que se cruzam com as da Galiza.
Nas canções de José Afonso identificamos as nossas mais belas e complexas utopias, ditas de forma simples. Pressentimento, uma voz que como nação sempre nos acompanhou, que percorre connosco este Portugal, que nas suas palavras é “um areal onde não nasce o dia”.
O dia que nasce é sempre uma utopia, pois caso assim não seja, é só um dia igual aos outros, em que se faz o que se tem a fazer, em que se vai levando para a frente o quotidiano.
Voltemos ao espectáculo do Teatro Experimental do Porto, “José Afonso, ao vivo nos Coliseus, 1983”. Nele há textos de escritores de hoje, a que dias e utopias se dedicarão nos seus escritos?
A resposta talvez esteja numa passagem de um texto de Rui Pina Coelho, um desses escritores de hoje, em que ele nos fala de um outro seu texto: “Um texto sobre amigos que vêem os amigos a crescer e a mudar. Um texto sobre a vida que fui vivendo, sobre a que me foram contando e sobre a que fui vendo. Em casa, no trabalho, nas ruas, nas manifestações, nos livros e nos jornais. Passaram, entretanto, dez anos. E este é agora um texto para hoje. Para o que ainda nos vai acontecendo. E tem acontecido tanta coisa. A raiva do Jaime é diferente da raiva do Jimmy. A nossa raiva é confusa, dispersa, plural. Ou, pelo menos, a minha é assim. Se é que lhe posso chamar raiva. É pela promessa de liberdade que se esfumou. É uma raiva pela destruição das coisas verdadeiramente importantes – a paz, o pão, educação, saúde – banhada num mar de irrelevâncias, banalidades e futilidades..”


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