Hoje é o Dia da
Mãe, há uns dias foi o Dia do Pai. Nós, se tivéssemos que aconselhar um
presente para oferecer nestas ocasiões, aconselharíamos o livro para crianças e
jovens “Os piores pais do mundo”.
São histórias
sobre mães de cabeça perdida e pais amalucados. No anúncio ao livro diz-se
assim: “Põe uma mola no nariz, há um pai que cheira muito mal dos pés... Sai da
frente que vem aí a mãe-condutora mais rápida da estrada! E não esqueçamos a
supermãe, que só te deixa ficar mal. De esfregona em punho, vai tomar conta de
ti... e do mundo!”
Escrevemos ontem
neste blog acerca da esterilização do mundo, ou seja, de como em restaurantes,
lojas, hotéis e em muito mais locais, o estilo decorativo “clean”, minimalista
e asséptico se tornou um símbolo de elegância e sofisticação.
Escrevemos
também que essa tendência se verifica noutros domínios, que não apenas os da
moda e da decoração de interiores. Verifica-se por exemplo nas escolhas
profissionais e no modo como os ofícios mais “sujos” são desvalorizados
socialmente.
Por fim, escrevemos ainda de como tudo isto se constata igualmente nas artes e letras e muito particularmente na chamada literatura infantil e juvenil, sendo deste último ponto que hoje vos queremos falar.
Neste entretanto, quem quiser ler ou reler o que ontem escrevemos, aqui tem o link:
https://ifperfilxxi.blogspot.com/2023/05/para-que-estudar-para-sujar-tudo-ca-esta.html
Um dos domínios
onde a esterilização do mundo é mais evidente é na literatura infantil e
juvenil. Neste caso, trata-se de uma esterilização narrativa e ideológica, ou
seja, concebem-se histórias “limpas”, que logo à partida são pensadas como
tendo o objetivo de não causar a mais leve perturbação ou ofensa a ninguém, e
em que todas as mensagens implícitas ou explícitas são positivas, integradoras,
motivadoras e inclusivas.
Mensagens
positivas, inclusão, motivação e tudo o mais são coisas muito boas, louváveis e
até indispensáveis, todavia, nada disso tem a ver com boas histórias.
Uma história, ou
melhor, uma boa história, tem sempre em si algo de perturbador e de disruptivo.
Eventualmente, mesmo que não seja de todo em todo essa a intenção de quem a
escreve, tem também quase sempre algo de potencialmente ofensivo para alguém.
Uma graçola e uma parvoíce são condições “sine qua non” de uma boa história.
Em síntese,
estamos perante uma quadratura do círculo, há muitos autores de livros infantis
e juvenis que querem escrever boas histórias, mas fazem-no com pinças e com mil
cuidados, ou seja, sendo 100% politicamente corretos e tendo extrema atenção em
não perturbar ou ofender seja quem for.
Como deveria ser
evidente, é uma missão impossível. O mais que conseguem é escrever coisas
cheias de boas intenções e muito didáticas, mas sobretudo chatas e aborrecidas.
Passou há uns
dias na RTP 2 um documentário intitulado “Uma guerra fria muito animada”. O
tema desse documentário é a história de como ao longo da Guerra Fria
(1947-1991), a URSS e os Estados Unidos procuraram moldar a imaginação das
crianças e jovens por meio de livros, revistas e filmes. Nunca foram feitos
tantos filmes e publicadas tantas histórias para a infância e juventude como
durante esses anos.
As publicações e
filmes com origem nos EUA contavam histórias que nada tinham de didático. Eram
histórias simplesmente românticas, heróicas ou violentas, ou todas essas coisas
simultaneamente.
Uma outra
característica de muitas personagens infantis e juvenis norte-americanas, era
serem mestres na prática de um tipo de humor a que chamaríamos corrosivo. O que
não faltava eram sarcasmos e ironias que atingiam tudo e todos sem dó nem
piedade.
Já do lado da
URSS e dos seus satélites do bloco de leste, a situação era mais complexa.
Havia quem contasse histórias que eram autênticas obras-primas, plenas de
imaginação e fantasia. Histórias que encantavam e perturbavam, como todas as
boas histórias. Como seria expectável, tais histórias “ofenderam” as autoridades
e em muitos casos custaram aos seus autores o desdém e até o exílio.
Do lado leste,
havia também quem contasse histórias didáticas. Histórias que promoviam os
valores positivos dos regimes socialistas: o trabalho, a cooperação, a
obediência, o esforço e a dedicação.
Os autores que
assim o faziam eram celebrados e agraciados pelas autoridades. As crianças e
jovens é que só liam essas histórias porque na escola as obrigavam. O que
verdadeiramente liam com gosto e prazer eram as “perniciosas” histórias oriundas
dos EUA, que entravam nos países do antigo bloco de leste através de um
próspero e lucrativo sistema de contrabando que à época foi montado para tal
efeito.
O facto é que o
Muro de Berlim caiu e os regimes socialistas de leste acabaram por se desmoronar.
Quanto desse desmoronamento se ficou a dever às histórias didáticas que as
autoridades insistiam em promover, é algo que quem nos lê pode descobrir
através do documentário “Uma guerra fria muito animada” na RTP Play, ou através
da Box ou link abaixo:
https://www.rtp.pt/play/p11665/uma-guerra-fria-muito-animada
Ora bem, o que
os atuais autores de histórias infantis e juvenis esterilizadas deveriam fazer
era olharem para a História. Olhando, perceberiam que as boas histórias nada
têm que ver com as boas intenções, são departamentos absolutamente diferentes,
o das boas histórias e o das boas intenções.
Talvez haja quem
nos vá contrapor com o argumento de que os tempos de agora já não são os de
antigamente, que tudo muda, que é preciso modernizarmo-nos e tudo isso. Tudo
muito certo, o problema é que ao contrário do que muita gente crê, esterilizar
não é um sinónimo de modernizar.
Para provar que
as histórias para crianças e jovens podem ser modernas e atuais sem para isso
serem insípidas e didáticas, vamos deixar-vos algumas sugestões de leitura.
Comecemos por um
livro que vendeu milhões de exemplares pelo mundo e que desde a primeira à
última página, mais não faz do que ironizar sobre os professores. Inicia-se
logo assim: “Achas que os teus professores são uma seca? Espera até conheceres
estes.”
Não há neste
livro a mais leve tentativa de passar a mensagem às crianças e jovens que devem
respeitar os seus professores, nem sequer de dizer que há professores melhores,
uns assim-assim e outros maus e que temos que os aturar a todos. Nada disso,
nesta obra a classe docente é toda corrida a eito, são uma seca e pronto.
Há professores
que podem sentir-se ofendidos ou achar que é um livro deseducativo que mina a
sua autoridade. A isso nós respondemos, por amor de Deus, trata-se de contar
uma história, ou seja, de entreter, de encantar, de fascinar, de divertir e de
educar.
Educar mas no
sentido mais extenso do termo, ou seja, no sentido em que aprendemos a rir sem
medos do que é risível, a não fazer dramas, a relativizar e a viver com
alegria. O título do livro é “Os piores professores do mundo” e o seu autor é
David Walliams.
Sugerimos também
uma autora israelita, Rutu Modan. O seu melhor livro talvez seja “O jantar com
a rainha”, não cremos que esteja ainda editado em português, mas já existem
edições em francês, em inglês e em espanhol.
A história deste
livro é a de uma rapariga que é convidada para jantar com a Rainha de
Inglaterra no Palácio de Buckingham. Ao invés de se comportar exemplarmente de
modo a estar à altura de tão honroso convite, a rapariga porta-se
horrivelmente. Faz trinta por uma linha, é malcriada e faz gala em comer com as
mãos e em ter maus modos.
Em resumo, a
rapariga faz aquilo que qualquer rapariga fresca e saudável faria quando lhe
recomendam vivamente que se porte bem, ou seja, porta-se mal.
Noutros livros,
esta mesma autora, Rutu Modan, conta histórias de guerra, de morte e de
sofrimento. Histórias que perturbam mas que educam. Mais uma vez, que educam no
sentido mais extenso do termo, entenda-se.
Deixamos-vos um
pequeno vídeo sobre o seu trabalho, em que Rutu Modan diz que é muito perigoso
viver num mundo onde já não podemos simplesmente dizer uma parvoíce. É algo que
a todos nos deveria deixar a pensar:
Uma outra obra
para crianças e jovens que aconselhamos, é a da autora holandesa Tosca Menten,
nomeadamente, “A vingança de Oinc”. Logo na capa, só para a abrir o apetite e
dar o tom, um dos personagens, o porquito Oinc, é transformado num monte de
salsichas.
Neste livro há
também um caracol que tem uma relação platónica com uma Top-Model parisiense,
um porquinho da índia que faz chantagem sobre o diretor da Real Academia de
Letras, uma formiga entediada do seu trabalho e um corvo que passa o tempo a
queixar-se dos vizinhos.
Uma última
sugestão. Dizem que uma cabeça recém cortada pode ainda pensar durante algum
tempo, mesmo depois de separada do corpo. Para que crianças e jovens possam
conhecer que tipo de pensamentos terão as cabeças cortadas, há que ler o livro
“Em que pensa uma cabeça recém cortada” da autoria de Juan Carlos Quezadas e
Carla Besora.
Em conclusão, o
que todas estas obras que aconselhámos possuem em comum é serem atuais e
modernas, mas não esterilizadas. A ironia é um pilar fundamental de todas elas,
assim como o seu carácter transgressor.
O facto de não existirem advertências nem cuidados, dá liberdade a quem as lê, ou seja, às crianças e jovens, de pensar e formular as mais inesperadas perguntas. Se não é para isso que se aprende a ler, não fazemos a mais pequena ideia para o que seja.
Que ninguém
subestime ou sobreproteja crianças e jovens aconselhando-lhes leituras
esterilizadas e didáticas, até porque não serve para nada, pois os mais novos
são os leitores mais sinceros que existem, se o que leem não lhes desperta o
interesse, fecham o livro e vão fazer outra coisa qualquer, que é também o que
nós vamos agora fazer.
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