DIVAGAÇÃO – É já no próximo domingo que muda a hora. Tal mudança é sempre um tanto ou quanto perturbante, pois quando forem duas da manhã, os relógios serão atrasados sessenta minutos, passando novamente a ser uma. É como se o tempo fosse uma mera convenção, e se pudesse andar para a frente e para trás conforme as conveniências.
Mas mesmo que o tempo marcado pelos relógios seja convencionado, há horas certas que não podem ser mudadas, são aquelas e mais nenhumas. São horas que estão para lá de todos os relógios e convenções. Por exemplo, há um fado cuja letra reza assim: “Tenho o destino marcado desde a hora em que te vi”.
Também jamais poderiam ser mudadas aquelas tremendas “cinco de la tarde” cantadas num poema de Frederico García Lorca. Foi precisamente às cinco que o touro entrou na arena, nem antes, nem depois. Era a hora marcada para o silêncio se fazer sentir sob o escaldante sol da Andaluzia. Aqui fica o princípio e o fim:
Às cinco horas da tarde.
Eram cinco da tarde em ponto.
Um menino trouxe o lençol branco
às cinco horas da tarde.
Um cesto de cal já prevenida
às cinco horas da tarde.
O mais era morte e apenas morte
às cinco horas da tarde…
…As feridas queimavam como sóis
às cinco horas
da tarde,
e as pessoas quebravam as janelas
às cinco horas da tarde.
Ai que terríveis cinco horas da tarde!
Eram as cinco em todos os relógios!
Eram cinco horas da tarde em sombra!
Não são pois os relógios que marcam as horas marcadas, nem que nos revelam a verdadeira face do tempo.
“Que é pois o tempo? Se ninguém
me pergunta, eu sei. Se quero explicá-lo a quem me pede, não sei”.
As palavras
são de Santo Agostinho, que viveu entre os anos de 354 e 430 d.C. e constam da
sua mítica obra “Confissões”, onde nos fala da procura, do encontro, da
alegria, do erro, das ilusões, dos sentimentos e de como tudo isso se relaciona
com o tempo e com a memória.
Se em
nenhuma circunstância é fácil falar da matéria de que é feito o tempo que
passa, muito menos o será fazê-lo a crianças ou jovens alunos, por quem o tempo
ainda pouco passou.
No entanto,
foi qualquer coisa de semelhante que tentámos fazer com o guião de aprendizagem "A Espiral do Tempo", ou seja, não tanto falar-lhes propriamente daquilo de que
é feito o tempo, mas sim mostrar-lhes o seu efeito ao longo da história.
Já antes
aqui tínhamos apresentado esse guião, qual a sua INSPIRAÇÃO e INTENÇÃO, "Em busca do tempo perdido".
Cumprida
essa parte, vamos continuar a divagar à sua volta, tal e qual os ponteiros
rodam em torno do centro de um relógio.
E é
precisamente com relógios que começamos. Christian Marclay é um artista
contemporâneo que concebeu uma espécie de vídeo-collage que dura nada mais,
nada menos do que 24 horas, um tempão.
O vídeo é
composto de mais de um milhar de fragmentos de outros filmes, sendo que, em
cada um desses excertos aparece um relógio. Mais do que isso, cada relógio
que vai aparecendo marca um dos distintos 1140 minutos que constituem as 24
horas de um dia.
Assim, se
começarmos a ver o vídeo às 00h00 aparece uma cena de um filme com um relógio a
marcar esse mesmo minuto, um minuto depois, uma outra cena com 00h01, de
seguida, passado mais um minuto, 00h02 e assim sucessivamente durante todas as 24
horas do dia, até surgir uma última cena com um relógio que marca 23h59.
O título da video-collage é “The Clock”. Tem sido exposta por todo o mundo. Há uns anos foi apresentado em Lisboa, no CCB, e também em São Paulo no Brasil. Aqui fica uma breve síntese feita pelo artista aquando da sua apresentação na cidade paulista:
Quando a
obra esteve no CCB em Lisboa, que nesse tempo ainda albergava o Museu Berardo, nós
fizemos a experiência de ir ver minuto a minuto como se sucediam as 24 horas de
um dia.
A determinada altura dormimos um bocado, mas em termos gerais demos o tempo por bem empregue. Deixamos-vos a notícia desse acontecimento, que muito apropriadamente foi publicada no site informativo Notícias ao Minuto:
https://www.noticiasaominuto.com/cultura/353843/christian-marclay-exibe-the-clock-no-museu-berardo
Entre outras
coisas, o que “The clock” nos dá a ver é que mesmo quando não há mudanças da
hora, há horas que mudam tudo. Onde melhor nos podemos aperceber disso, é
precisamente nos filmes.
Nos filmes,
nos momentos decisivos da narrativa, não raras vezes aparece um relógio. O que
isso nos diz, é que o cinema é uma arte que lida com imagens, mas é
simultaneamente uma arte do tempo. Quem melhor escreveu sobre essa estreita relação
foi o filósofo francês Gilles Deleuze num ensaio que vale muito a pena ler:
Não vamos
aqui falar-vos das elaboradas teses de Gilles Deleuze, mas vamos continuar-vos
a falar de filmes, do tempo e também de memórias. Pensemos num filme de 1942,
“Casablanca”.
Pelo mundo os tempos eram de guerra, mas Casablanca estava em paz, razão pela qual aí iam ter gentes de todo o lado. Ilsa Lund, personagem interpretada por Ingrid Bergman, também está de passagem por essa cidade, vai acompanhada pelo seu marido. Quem também aí tem um café é Rick, um aventureiro.
Ilsa sente-se
dividida entre o seu
marido Victor Laszlo, um bravo e nobre herói da resistência, e o personagem interpretado
por Humphrey Bogart, Rick, o seu amante de antes, dos tempos em que viveu feliz
e despreocupada em Paris.
Depois de muitos e variados acontecimentos, chegamos à cena final. Victor Laszlo está
dentro de um avião no qual partirá para cumprir mais uma missão. Aguarda por
Ilse, que na pista do aeroporto conversa com Rick. Hesita mas diz querer permanecer
em Casablanca e deixar que Victor Laszlo parta só no avião, contudo, sacrificando-se,
Rick acaba por ter um gesto nobre e incentiva-a a partir, sendo nesse momento
que lhe diz "We'll always have Paris."
Tal como no fado em que o destino marca a hora, tal como no poema de Lorca, também nesta caso se deu uma hora que não pode ser mudada, mas que tudo mudou.
Ilse e Rick, ainda que separados, sabem agora quem são e ao que vão. Foi o que nós quisemos também que os nossos alunos soubessem com o guião de aprendizagem “A Espiral do Tempo”. Ou seja, que soubessem que são herdeiros da história europeia, e que pertencem a um país e a uma cidade onde romanos, árabes e outros deixaram um enorme legado, por todo lado há recordações dessas antigas civilizações.
Terminamos como uma velha canção que nos diz assim:
Que reste-t-il de nos amours
Que reste-t-il de ces beaux jours…
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