DIVAGAÇÃO - Paradoxalmente, em Veneza vivem mais mortos que vivos. Com efeito, devido à especulação imobiliária, aos interesses comerciais e turísticos, a cidade de Veneza, que já foi grande e poderosa, tem hoje menos de 50 000 habitantes, no entanto, o seu principal cemitério tem perto de 85 000 residentes.
Já antes vos falámos de Veneza a propósito do guião de aprendizagem “Ser ou não ser, eis a questão”, na publicação Lisboa não sejas francesa
Vamos continuar
a fazê-lo, aproveitando para tal a proximidade do Dia de Todos os Santos e também
do de Finados.
O mais importante cemitério de Veneza ocupa toda a pequena Ilha de San Michele e foi erguido em 1807. A última viagem dos falecidos ocorre de barco, sendo que, em ocasiões especiais, o transporte é feito em gôndolas funerárias, ricamente ornamentadas.
No guião de
aprendizagem “Ser ou não ser, eis a questão”, pedíamos aos alunos que falassem
sobre uma obra do pintor veneziano Vittore Carpaccio (1465 -1526), obra que faz
parte da coleção do Museu Calouste Gulbenkian, “Sagrada família e doadores”.
Para nós seria
expectável que a grande maioria dos alunos reconhecesse quase imediatamente a
cena representada como sendo a do nascimento de Cristo. Até porque, segundo uma
sondagem aleatória, muitos costumam ter um presépio em casa por alturas do
Natal.
Surpreendentemente,
foram poucos, praticamente nenhuns, os que associaram de imediato a imagem de
Carpaccio à natividade. Só após uma longa conversa o foram conseguindo fazer.
Tal situação deixou-nos perplexos e leva-nos a refletir, mas antes disso, abaixo, a referida obra de Vittore Carpaccio, “Sagrada família e doadores” de 1505.
Estamos em
crer que ainda há bem poucos anos, qualquer criança ou jovem minimamente
familiarizado com as figuras do presépio, fosse ou não praticante, não teria a
menor dificuldade em reconhecer o significado da cena representada no quadro,
no entanto, não foi nada disso o que sucedeu, antes pelo contrário.
Haverá
diversas razões para que poucos, quase nenhuns, tivessem conseguido vislumbrar
uma cena da natividade na imagem, todavia, uma dessas razões é certamente a
falta de conteúdo e significado com que atualmente se vivem certas datas e
ocasiões festivas. São datas que favorecem o comércio e pouco mais.
Em dados
momentos, celebra-se e comemora-se apenas porque sim, porque todos assim o
fazem. Há cá exemplo mais claro disso mesmo, que o Halloween? Em Portugal
fazem-se grandes festas de Halloween e do Dia das Bruxas vá-se lá saber a
propósito de quê. Provavelmente, tão-somente porque nos Estados Unidos da
América também as fazem e repete-se o que se viu no cinema e na TV, sem mais
nem porquê.
Nos Estados
Unidos da América, o Halloween faz parte de uma tradição, a sua celebração tem
todo o sentido, contudo, em Portugal é só uma festa de imitação, que nada ou
pouco significa, apenas uma mera diversão, quase igual ao Carnaval.
É tanto mais igual ao Carnaval, sobretudo porquanto também nessa ocasião, há localidades de Portugal, que organizam corsos sem sentido, com marchantes vindas diretamente do Brasil, que seminuas desfilam à chuva e ao frio. Será que ninguém vê que por cá em fevereiro, não está tão quente como no Rio de Janeiro?
O problema é que todos estes eventos cujo significado é nenhum, contaminam tudo o resto. Daqui a uns tempos virá também o Black Friday e vai tudo a correr fazer compras para aproveitar os descontos, sem que ninguém perceba por qual razão não se faz igual na semana seguinte ou na anterior.
Já
agora, aproveitamos para informar que a denominação surgiu em Filadélfia,
quando a polícia local começou a chamar Black Friday ao dia seguinte ao feriado
de Ação de Graças, a quarta quinta-feira do mês de novembro. Nessa data há
sempre muita azáfama e enormes congestionamentos, pois inicia-se nesse dia a
grande maratona comercial que só termina no Natal.
Em
síntese, crescendo com tantas datas de que desconhecem o verdadeiro significado
só sabendo da sua vertente comercial, é normal que os mais jovens se habituem a
comemorar sem saber o sentido do que se celebra. Não espantando portanto, que
vejam uma pintura representando uma cena do nascimento de Jesus e não a
relacionem nem com o presépio, nem com o Natal, nem com nada.
Voltemos
a Veneza. Ezra Pound (1885 -1972) foi um poeta norte-americano, que cedo na
vida abandonou os Estados Unidos. Considerava que o seu país era habitado por
gente vulgar, cujos únicos interesses eram o dinheiro e os negócios. Veio por
isso viver para o velho continente, onde esperava caminhar por entre os
vestígios da sua longa história, conviver com a sua profunda cultura e respirar
o ar denso da sua poesia.
Andou
muitos anos por entre Londres e Paris, mas acabaria por se fixar em Veneza. É
aí também, no cemitério da San Michele, que se encontra a sua última morada.
Ezra
Pound defendeu posições políticas bastante controversas, que inclusivamente lhe
valeram ser acusado de traição e ter sido condenado e preso, todavia, a importância
da sua poesia vai para lá das suas desajeitadas e desajustadas opiniões.
Um
dia Ezra Pound escreveu um poema intitulado “Usura”. Usura é um contrato pelo
qual se cede um objecto, cuja restituição está dependente do pagamento de uma
determinada quantia com os respetivos juros.
No
fundo, aquilo de que o poema de Ezra Pound nos fala é de como os valores
comerciais e financeiros se sobrepõem ao verdadeiro significado das coisas,
degradando-o e anulando-o. Não é um poema fácil, é muito mais complicado do que
um simples “doçura ou travessura”. Deixamos-vos um excerto.
com usura…
pintura alguma é feita pra ficar
nem pra com ela conviver
só é feita a fim de vender
e vender depressa
com usura, pecado contra a natureza,
sempre teu pão será rançosas côdeas
sempre teu pão será de papel seco
sem trigo da montanha, sem farinha forte
com usura uma linha cresce turva
com usura não há clara demarcação
e homem algum encontra sua casa.
O talhador não talha sua pedra
o tecelão não vê o seu tear
Com Usura
não vai a lã até a feira
carneiro não dá ganho com usura
a usura é uma peste, usura
engrossa a agulha lá nas mãos da moça
E só pára a perícia de quem fia. Pietro Lombardo
não veio via usura
Duccio não veio via usura
Nem Píero della Francesca; Zuan Bellini não pela usura
nem foi pintada ‘La Calunniua’ assim.
Angélico não veio via usura; nem veio Ambrogio Praedis,
Não veio igreja alguma de pedra talhada
com a incisão: Adamo me fecit.
Nem via usura St Trophime
Nem via usura Saint Hilaire.
Usura oxida o cinzel
Ela enferruja o ofício e o artesão
Ela corrói o fio no tear
Ninguém aprende a tecer ouro em seu modelo;
O azul é necrosado pela usura;
não se borda o carmesim
A esmeralda não acha o seu Memling
A usura mata o filho nas entranhas
Impede o jovem de fazer a corte
Levou paralisia ao leito, deita-se
entre a jovem noiva e seu noivo
contra naturam
Trouxeram meretrizes para Elêusis
Cadáveres dispostos no banquete
às ordens de usura.
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