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Há poesia em qualquer lugar, basta olhar.

 


Como certamente saberão, comemora-se na presente semana o Dia Mundial da Poesia. Mesmo sendo nós pouco dados a comemorações oficiais, que precisamente por o serem, de poético nada têm, ainda assim, vamos abrir uma exceção e dedicar estes dias a alguns poetas e aos seus poemas. Começámos ontem, continuamos hoje. Aqui fica o nosso texto do dia anterior, “Temos sérios poemas mentais”:
Também ontem, morreu um homem que passou uma vida inteira a ser poeta e a refletir sobre o que é a poesia. Para além disso, foi professor, durante anos no ensino secundário, depois no universitário.
Surge-nos a esse propósito uma questão, terá esse homem ensinado aos seus alunos o que é um poema e o que é ser-se poeta, ou ter-lhes-á simplesmente dado a matéria?
Em boa verdade não o sabemos, mas em qualquer dos casos, temos a certeza que de poesia lhes terá ensinado tudo o que sabia. Acerca daquilo que não sabia nem podia saber, não havia modo de os ensinar. O falecido poeta chamava-se Nuno Júdice.
Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.
Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.
Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exatamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.
E que sabemos nós, do que é a poesia? E o que será ser-se poeta? Questões difíceis, quase impossíveis. Antes de mais, ou seja, aquém de nos perguntarmos sobre o que é a poesia ou o que é ser-se poeta, talvez haja uma questão prévia e mais compreensível, a saber, o que é um olhar poético?
Com efeito, talvez esta última questão seja bastante mais simples e acessível que as duas primeiras. Na realidade serão muito poucos os que conseguirão ser poetas e menos ainda os que saberão dizer o que isso é. Traduzir em versos o que se vê, vive e sente, é coisa só ao alcance de uns raros, ou seja, de uns quantos atípicos que possuem esse imenso talento, os escassos extraordinários que detêm esse espantoso dom.
No entanto, para se ter um olhar poético não é preciso tanto, para isso não é necessário ser-se poeta, nem conseguir-se explicar o que é a poesia. Olhar poeticamente é coisa simples, ao alcance de todos e qualquer um, bastando para tal saber-se desviar o olhar do seu habitual e previsível caminho e deixarmo-nos surpreender por ocorrências tão visíveis e comuns, como por exemplo, um sorriso.
Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação
dos lábios.
É provável que nalgum momento alguém, seja lá quem for e que estudos académicos ou conhecimentos poéticos possa ter, já se tenha detido silenciosamente a ver as nuvens e o mar, tendo assim ficado poeticamente a olhar.


Um olhar poético não é mais do que isso, uma contemplação desinteressada, sem mais nem porquê, do que deixar-se estar simplesmente a ver.
Quem olha para o mar nele vendo viagens a fazer, projetos turísticos por concretizar, rotas marítimas por explorar e recursos por utilizar, não o olha poeticamente, possui sim um qualquer interesse.
Um armador naval, um almirante, um engenheiro hidráulico, um marinheiro ou um empresário das pescas perscrutam no mar algo de útil, veem nele uma intenção ou anteveem um projeto. Querem entrar por ele adentro e explorá-lo. Já quem o olha só por olhar, vê nele apenas um poema.
Nuno Júdice falava-nos num dos seus poemas de uma ilha na Grécia, de um café à beira-mar, da rapariga que lá trabalhava e que dizia conhecer muitos que quiseram ir pelo mar adentro em busca do que desejavam, ambicionavam e desconheciam. Não era esse o caso do poeta, que se limitava a olhar o mar, e mais tarde ir a correr apanhar um barco, para depois disso compor uns quantos versos.
Mas mesmo quem não saiba escrever versos e numa ilha grega jamais tenha estado ou venha a estar, a verdade é que mesmo assim pode poeticamente deter o seu olhar sobre o mar num qualquer outro lugar.
Seja como for, aqui ficam os versos de Nuno Júdice:
Foi nas ilhas gregas que vi o mediterrâneo
completamente azul, sem sombra de transparência. «E
ainda bem que é assim», disse-me a rapariga grega que
servia cafés à beira das rochas. «Conheci alguns que
quiseram rasgar o mar para ver o que ele escondia,
e nunca mais voltaram.»
Percebi o que ela queria: que
eu rasgasse a superfície do mar, e descesse os degraus
do abismo que nos prende até à eternidade. «Se vieres
atrás de mim, e me puxares de volta, farei o que
desejas.» Mas ela fingiu que não percebia a minha
língua, embora falássemos num inglês de aeroporto.
E quando chegámos ao grande anfiteatro, debaixo
das colinas de pinheiros bravos e dos bosques de
ciprestes, o céu estava completamente limpo, como se
os deuses já tivessem deixado de existir. Ainda recitei
um verso em grego antigo, pondo as aves em
debandada. «Vês o que fizeste?», gritou-me a rapariga
grega. «Encheste o céu com uma nuvem de pássaros!»
E ficámos a olhar para eles, à espera de saber para
onde se dirigiam. Mas fazia-se tarde para apanhar
o barco. As ilhas fazem-me claustrofobia, disse
à rapariga grega. E entrei a correr para o barco que
já tinha os motores a trabalhar, sem lhe pagar o café.
Mas em poesia, o mar pode não o ser, pode até ser uma mera esquina. Como assim, perguntará quem nos lê. Sim, o mar pode ser uma qualquer esquina, pois também aí podemos deter o nosso olhar e poeticamente vermos o que habitualmente não vemos.
Sabemo-lo porque Nuno Júdice intitulou um dos seus poemas “Numa esquina do inverno, encontrei a primavera”. Desta vez não vale a pena transcrevermos o poema, pois quem quer que o queira ler, facilmente o encontrará na internet. O título, só por si, já diz aquilo que queríamos dizer, quando falámos de uma esquina que podia ser tal e qual o mar.
E quem diz o mar ou uma esquina, diz uma casa, uma cidade ou um rio…


E dito isto, dissemos o que tínhamos para dizer. Em síntese, não sabemos o que é a poesia nem o que é ser-se poeta, não sabemos sequer escrever uns versos, porém sabemos que podemos olhar para o mar, para um rio, para uma cidade, uma casa ou uma esquina poeticamente, o que sendo bastante simples, não é pouco.
Terminamos com o poema “Até ao fim”, em que o poeta explica aos seus leitores como compõe um poema:
Mas é assim o poema: construído devagar,
palavra a palavra, e mesmo verso a verso,
até ao fim. O que não sei é
como acabá-lo; ou, até, se
o poema quer acabar. Então, peço-te ajuda:
puxo o teu corpo
para o meio dele, deito-o na cama
da estrofe, dispo-o de frases
e de adjectivos até te ver,
tu,
o mais nu dos pronomes. Ficamos
assim. Para trás, palavras e versos,
e tudo o que
não é preciso dizer:
eu e tu, chamando o amor
para que o poema acabe.

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