Este fim de semana os franceses vão a votos, mas para além disso, vai começar também o Tour de France, que é a mais mítica de todas as competições que existem. O modo como aqui usamos a palavra mítica, não pretende significar que o Tour seja a mais conhecida ou a mais popular prova, nem sequer que seja a melhor peleja desportiva de sempre, nada disso. Neste caso em específico, a palavra mítica, quer dizer tão-somente, que o Tour é a contenda mais capaz de criar contos, lendas, sagas e fábulas.
No fundo, “mítica” significa que cria mitos, palavra de origem grega (μυθος) cuja tradução literal para português é histórias, ou seja, e para sermos redundantes, mitos são as histórias que se contam.
Bem sabemos que no futebol há mitos que nunca mais acabam, e que no ténis, e igualmente no basquetebol, também não faltam, bem como noutros desportos. No entanto, deixai que vos digamos, que o Tour em termos de histórias, é uma outra coisa.
Por assim ser, vamos também nós inventar uma história a propósito do Tour. Uma história que tem desporto, arte, música, política, desenhos animados, o sotaque de Paris, techno-pop, pneus, gente que vai ao ginásio pedalar, gente que anda nua numa bicicleta e rabos grandes.
Para começarmos, uma pintura de Jean Metzinger, “Au vélodrome”, de 1912. Atualmente a obra faz parte da coleção Peggy Guggenheim e encontra-se exposta na sua casa-museu em Veneza.
Há recintos desportivos míticos como o Maracanã, Roland Garros, Wimbledon, Wembley ou o Madison Square Garden, contudo, todos eles são locais fechados e situados apenas num lado, nenhum se compara portanto ao “recinto” onde se disputa o Tour, a saber, a França inteira.
O Tour é todo ele a céu aberto, há dias de chuva e nevoeiro e outros com o esplendor do sol a brilhar e um intenso calor. O Tour atravessa os mais altos Alpes, as longas e extensas planícies douradas do centro de França, as orlas marítimas mediterrâneas e termina na cidade-luz nos Campos Eliseos, mesmo junto ao Arco do Triunfo. Em resumo, o Tour é incomparável.
Talvez quem melhor tenha expressado tudo o que de bom se pode ver num Tour pela França inteira, tenha sido Maurice Chevalier numa antiga canção, “Ça Sent Si Bon La France”.
Chevalier elenca-nos algumas das maravilhas gaulesas: um velho sino ao entardecer (un vieux clocher dans le soleil couchant), os grandes campos de trigo maduro plenos de flores silvestres (ces grands blés mûrs emplis de fleurs des champs), um amigo de sempre que nos cumprimenta com um abraço (un vieux copain vient vous sauter au cou), uma certa morena de olhos celestiais (cette brunette aux yeux de paradis) e ainda muitas outras coisas mais.
Aqui fica “Ça Sent Si Bon La France”, canção cantada no inigualável sotaque de certos bairros mais antigos de Paris onde nenhum “r” fica por dizer ou passa despercebido, pois todos são entusiasticamente carregados e acentuados:
Já agora, e para que se faça um claro contraste, ficam igualmente a saber que o Tour de France inspirou também músicos altamente modernos e hiper-contemporâneos, como por exemplo, os Kraftwerk. A banda alemã de techno-Pop fez e refez um álbum que intitulou “Tour de France”.
A primeira versão foi lançada em 1983 e a última, até à presente data, no ano de 2009. Vale a pena ouvir para se perceber como os sons computadorizados e remasterizados conseguem tão bem transmitir-nos a “joie de vivre” que é percorrer a França num velocípede, e também para se ver algumas das mais míticas imagens de etapas que ficaram na história:
O certo é que chega a ser quase irónico, que no mesmo fim de semana em que se realizam umas eleições francesas em cujo medo, a frouxidão e a intolerância parecem ser os principais ingredientes, se inicie igualmente o Tour de France, que é uma prova em que se celebra precisamente o oposto de tudo isso, ou seja, a audácia, a coragem e a liberdade.
A audácia de não se hesitar em subir-se aos picos das mais íngremes montanhas, como os dos Alpes ou os dos Pirinéus. A coragem de se descer por vales abaixo às mais altas velocidades sem nunca se pensar sequer em travar. E a liberdade de se rodar livremente por imensas estradas afora, tendo unicamente por companhia outros ciclistas, a vista de largas paisagens, os céus sem fim e as brisas e os ventos, que ora sopram contra, ora estão a favor.
Aqui fica uma imagem de um outro quadro de 1912, este de Lyonel Feininger, no qual se retrata uma corrida de ciclistas. Pode ser visto na National Gallery of Art em Washington.
Os tempos atuais parecem querer contrariar o espírito livre e audaz do Tour de France e isto não só em termos políticos. A um nível muito mais corriqueiro, causa-nos uma grande perplexidade, que haja gente que se sente numa maquineta, que se assemelha vagamente a uma bicicleta, e se ponha afincadamente a pedalar, sem nunca sair do mesmo lugar.
Há lá coisa mais parva, do que pedalar nessas maquinetas que se assemelham as bicicletas, mas nas quais por mais que se pedale, não se sai do mesmo sítio? Bem sabemos que tais gentes estarão a fazer exercício físico, mas e então? Isso de nada adianta à nossa questão. Lá por estarem a fazer exercício físico, a coisa não deixa de ser parva na mesma.
Em certo sentido, poder-se-ia dizer que esse tipo de exercício é uma metáfora dos tempos que correm, pois nessas “bicicletas” pedala-se sem que com isso nos movamos um milímetro que seja do ponto onde nos encontramos.
Basta ver os debates políticos e outros confrontos deste nosso presente, para se perceber o alcance da dita metáfora. Tal e qual como a “bicicleta” para se fazer exercício físico não é uma verdadeira bicicleta, apenas imita uma, também os atuais debates não são verdadeiros debates, somente os imitam.
Não são verdadeiros debates, porque jamais algum dos debatentes se move um milímetro que seja do ponto onde se encontra. Um debate real, seria aquele em que pela troca de argumentos e pelo confronto de pontos de vista, algo se movesse e se transformasse. Quando os debatentes são de ideias fixas e nenhum liga patavina ao que um outro diz, mantendo a sua dê lá por onde der, todos ficam exatamente como estavam, consequentemente, não houve um real debate, mas sim uma simulação disso.
Se tanto faz que haja argumentos válidos do outro lado ou realidades factuais que desmintam o que um ou mais debatentes possam dizer, o certo é que se agitam e “pedalam” afincadamente mas para nada, pois nunca saem do mesmo exato sítio onde estavam. Poder-se-ia dizer, que a máxima que os inspira é “Daqui não saio, daqui ninguém me tira”, ou seja, sempre no mesmo lugar por toda a eternidade.
Abaixo uma instalação de 2011 do artista chinês Ai Weiwei composta por mais de mil bicicletas, “Forever Bycicles”.
Mas a metáfora das maquinetas vagamente bicicletas, pode ir ainda mais longe. Quando nelas se pedala, ao invés de se ir a pedalar pela estrada afora, livremente de cabelos soltos ao vento, fazendo-se ao caminho e vendo o que nos vai surgindo pela frente, prefere-se antes fazê-lo num espaço fechado, reservado e asséptico onde, o mais que acontece, se porventura acontecer, é perder-se umas quantas banhas e uns tantos pneus.
Quando as bicicletas são mesmo bicicletas, ou seja, quando se movem e tem pneus que rolam, a realidade torna-se mais complicada do que quando as bicicletas não são mesmo bicicletas e estão presas e fixas, inamovíveis. Neste último caso, aos pneus nem vê-los, não rolam, isto a não ser os das panças de quem nas maquinetas se senta e pedala sem ir a nenhum lado.
Andar de bicicleta exige equilíbrio e atenção à realidade, para não se cair ou se embater num qualquer obstáculo, pedalar sem sair do mesmo sítio é muito mais simples, pois não há qualquer necessidade de se ter equilíbrio ou atenção à realidade.
Como é uso dizer-se, um populista é alguém que tem soluções simples para questões altamente complexas, o mesmo é dizer, é alguém que não quer ir a lado nenhum, razão pela qual não precisa de equilíbrio nem de estar atento à realidade. Um populista quer simplesmente fingir que se move, mas de facto é de ideias fixas e jamais sai do mesmo lugar.
Compreender que a realidade é complexa e complicada, que se move e se transforma, é algo que, mesmo sendo difícil, está na verdade ao alcance de qualquer criança. Paradoxalmente, parece não estar ao alcance de uns quantos adultos, dos populistas, que preferem acreditar que o mundo devia estar parado e sossegado, e rejeitam desse modo todas as transformações e mudanças que o tempo sempre traz.
Mas dito isto, como nós temos uma veia pedagógica e somos simpáticos, vamos aqui deixar-vos um desenho animado, que nuns meros dois minutos e meio, explica perfeitamente a quem vai de bicicleta, que há caminhos diversos, obstáculos por perto, pneus que podem furar-se, buracos na estrada, surpresas, imprevistos e geometrias variáveis. Em síntese, explica que a realidade não é simples, fixa e sobretudo tão linear, como alguns nos querem fazer acreditar. É ver:
Esta nossa história que se iniciou com o Tour de France já vai longa, mas se bem se recordam, no início tínhamos dito que, para além de tudo o restante, também teríamos gente nua a andar de bicicleta, como o prometido é devido, vamos a isso.
Gente nua a andar de bicicleta é uma coisa complexa, mais a mais, quando o fazem passeando pela rua. Quem nos lê, deverá estar agora a cogitar de si para consigo, que há sítios onde uma pessoa não deve andar nua, sobretudo na rua.
Nós não vamos agora iniciar um debate sobre quais são os locais apropriados à nudez e os que nem é sequer bom pensar-se nisso, mas, e mais uma vez, também esta não é uma questão tão simples quanto aparenta ser, pois há quem seja tão livre e audaz, que se desnude em qualquer lugar, como por exemplo, uma tal Marine, que aqui há uns anos numa luxuosa sala de Paris onde a Le Pen falava à imprensa e às representações diplomáticas de múltiplos países, perante todos se despiu como forma de protesto contra as políticas da líder da Front National.
Vem tudo isto à liça, em consequência do vídeo-clip do tema dos Queen “Bicycle Race”. À data do seu lançamento, 1978, o vídeo foi uma coisa muito controversa, tendo sido proibida a sua passagem em vários países.
Como nós não queremos ser censurados e estamos cá desconfiados que toda a nudez será castigada, nem sequer vos deixamos o link do mesmo, e muito menos qualquer imagem. O que para o caso importa é que a canção “Bicycle Race” foi inspirada pelo Tour de France.
Um dia, estavam os Queen nuns estúdios em Montreux a gravar um álbum, quando subitamente veem passar o pelotão do Tour, puseram-se logo a compor um tema em que andasse tudo ao léu, livre e fresco. Daí para a frente, o resto é história.
A verdade é esta, o Tour inspira e sempre inspirou histórias, canções, quadros e até mesmo poemas, que celebram a audácia, a liberdade e outros sentires que fazem com que os nossos corações batam:
…Ils vont, toujours nombreux, chamarrés de couleurs,
Rouler vers l'inconnu, le rêve et la souffrance.
Sillonnant le Pays sous l'écrasant soleil
Que vient un peu fraîchir la pluie et son averse,
Le peloton défile et parfois se renverse
Quand la route est humide ou l'esprit en sommeil.
Mais partout au passage où se masse la foule,
Sur les trottoirs de ville, au bord d'une forêt...
Chacun veut son frisson dans l'attente ou l'attrait,
La caravane passe et déclenche une houle !
Puis, c'est l'incertitude et le furtif instant,
Celui d'apercevoir les maillots "vert ou jaune",
On fixe un arc-en-ciel filant comme un cyclone...
Il est déjà passé pour chaque coeur battant…
E é com este momento poético, que findamos esta nossa história inspirada pelo mítico Tour de France. Os nossos leitores mais compenetrados e atentos hão de ter reparado que agora sim, abordámos todos os temas a que nos havíamos proposto e a nossa história teve desporto, arte, música, política, desenhos animados, o sotaque de Paris, techno-pop, pneus, gente que vai ao ginásio pedalar, gente que anda nua numa bicicleta e rabos grandes.
Pois bem, afinal falta o último, por alguma razão, não nos lembrámos, mas ainda vamos a tempo. O facto é que quando os Queen lançaram o tema “Bicycle Race” o fizeram num single em cujo tema do lado-B era “Fat Bottomed Girls, assim sendo, é desta vez que a história fica completa.
Já agora, e mesmo para terminar, há aqui uma lição a retirar desta história. Como podem verificar pela capa do disco, a rapariga não vai de bicicleta completamente ao léu, para além do que traz na cabeça para a proteger do sol, de uns soquetes, e de umas sapatilhas, leva também um outro agasalho. Faz bem, pois caso assim não fosse, ainda o selim se lhe metia pelo “queen” adentro e era bem capaz de se desequilibrar. Moral da história: se forem praticar desporto, vão com atenção, devem sempre levar o equipamento adequado, quem vos avisa vosso amigo é.
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