Iniciámos ontem uma reflexão sobre o chamado brutalismo, um estilo arquitetónico no qual o que está posto à mostra é a autenticidade dos materiais, e muito concretamente do concreto, ou seja, do cimento.
Como é evidente, este não é blog cujo tema principal seja a arquitetura, a nossa razão de ser é a educação. Contudo, não raras vezes, as questões arquitetónicas misturam-se com as questões educativas e, quando assim é, não temos qualquer pudor em delas falar, mesmo que não sejamos especialistas no assunto.
Em boa verdade, também não somos especialistas em educação, apesar de dela falarmos abundantemente e também sem pudor. Por consequência, poder-se-ia concluir com toda a legitimidade, que a razão de ser deste blog é falarmos à bruta e impudicamente acerca daquilo de que pouco ou nada sabemos, seja de educação, de arquitetura, de cinema, de poesia ou de música.
Assim sendo, é com frequência que não dizemos nada de jeito, mas mesmo assim, se porventura alguém quiser ler o texto de ontem, aqui fica:
Ontem, para além de termos falado da Escola Secundária José Gomes Ferreira em Benfica, aconselhámos a quem nos lê três passeios pela Lisboa brutalista, mais concretamente, um que é uma visita às igrejas do Sagrado Coração de Jesus junto à Avenida da Liberdade e à de Nossa Senhora da Conceição nos Olivais, o segundo uma ida ao antigo restaurante panorâmico de Monsanto e o terceiro ir dar uma vista de olhos ao Palácio da Justiça, ali ao cimo do Parque Eduardo VII.
Cada um desses edifícios é uma ode à beleza do cimento. Quando bem armado, o cimento nu, despudorado e sem qualquer revestimento, torna-se lindo e poético. É a esse ousado gesto, pelo qual o material fica todo à mostra, aquilo que em arquitetura se chama brutalismo.
Ontem falámos igualmente de um ícone internacional do brutalismo, o Hirshhorn Museum em Washington, que celebrou recentemente o seu quinquagésimo aniversário. Um museu que é todo ele cimento, e que está instalado bem no centro de uma cidade, que é toda ela construída segundo os cânones clássicos.
Mesmo quem nunca tenha estado Washington, já terá certamente visto milhares de vezes em notícias, filmes e séries de TV, a imensa cúpula do Capitólio, as altas colunas da Casa Branca, o grandioso Lincoln Memorial e muitos outros monumentos da capital norte-americana, ora o Hirshhorn não é nada disso, é tão-somente um simples cilindro de cimento com um buraco ao centro. Em síntese, um autêntico monumento ao brutalismo.
Uma vez feito o resumo da matéria dada, avancemos. Rumemos ao norte do país, mais concretamente a Leça da Palmeira, mesmo junto ao Porto. É aí que se encontra a famosa Piscina das Marés, uma das primeiras obras do arquiteto Siza Vieira. Está oficialmente classificada como sendo um Monumento Nacional e o seu estilo integra-se no brutalismo.
A Piscina das Marés é uma harmoniosa síntese entre as rochas, a areia, o oceano e o betão. Sendo o cimento um material tão pouco considerado, em Leça da Palmeira conseguimos ver que ele se mostra bem capaz de se juntar ao céu, ao mar e às rochas e não deslustrar.
Uma imagem fotográfica não consegue transmitir-nos como é bela, simples e moderna a Piscina das Marés, razão pela qual, aqui ficam uns breves comentários do arquiteto Siza, que em minuto e meio nos diz quais foram as suas intenções quando a desenhou no já distante ano de 1966:
Como quem habitualmente nos lê saberá, uma das coisas que mais nos maça são as tendências conservadoras e sobretudo retrógradas, que atualmente parecem ir ganhando terreno em muitos lugares do mundo e também em Portugal.
Seja em matéria de costumes, de moralidade, de ciência, de cultura ou de educação, há sintomas preocupantes de que há muito quem queira voltar ao passado, ou seja, a um mundo rígido, ordenado e codificado, em que todos saibam qual é o seu lugar, como têm de pensar e agir, e em que no qual, se porventura alguém se atrever a destoar, seja imediatamente metido na linha.
No fundo, o que muitos pretendem, é que a tradição seja lei e que tudo se faça como antigamente se fazia, isto é, que haja respeitinho por quem manda e que ninguém ande para aí com modernices ou ideias inovadoras, sejam lá elas em que setor for.
Mas esses tais, querem mais do que isso, desejam igualmente abolir todos os avanços, progressos e inovações que ocorreram ao longo da segunda metade do século XX e o início do século XXI. A sua obsessão é regressarem a um passado idílico, que de facto nunca existiu, mas que nas suas mentes delirantes se apresenta como um mundo perfeito, quase divino.
Vejamos um exemplo, de entre centenas de outros possíveis. Durante a passada semana, o estado norte-americano do Louisiana aprovou uma lei, segundo a qual os Dez Mandamentos deverão, a partir de agora, estar expostos em todas as creches, jardins de infância e salas de aula de escolas e universidades públicas, em letra grande e facilmente legível.
Esses senhores e senhoras, para não lhes chamarmos outra coisa menos cordata, são uns grandes defensores da tradição e dos bons costumes, não conseguem dizer uma frase que seja, em que não lhes saia da boca a palavra “família”.
A família é o baluarte de tudo e o lar um lugar sagrado. Daí decorre que, tudo o que possa minimamente colocar em questão os valores familiares e a santidade do lar deve ser combatido e domesticado.
Por assim ser, a ciência, as artes e letras e as escolas e universidades, são potenciais ameaças aos tradicionais valores familiares e à tranquilidade do vida no lar. Com efeito, quer cientistas, quer artistas, quer escritores, quer professores, são gente que levanta questões, coloca dúvidas, analisa verdades feitas, descobre novos pontos de vista e exercita o pensamento, tudo atividades cuja ação pode destabilizar o convívio de uma família à hora de jantar.
Para que os repastos familiares decorram de forma pacata e pachorrenta, há que proteger as gentes de nefastas influências, sendo precisamente por esse motivo, que os senhores mais conservadores e retrógrados não se cansam de desacreditar a ciência, de atacar as artes e letras contemporâneas e de tentar condicionar os currículos de escolas e universidades.
Na gravura abaixo, é possível verificar como era calma e tranquila a vida nos lares de antigamente, não havia cá dúvidas, questões, discussões ou novidades. Vivia-se como habitualmente e, se reparem bem, os tetos eram feitos de barrotes, as louças eram de barro, os móveis de pau e a casa estava impecavelmente caiada de branco. Em resumo, todos os adereços e materiais de construção são locais e tradicionais, em lado algum se vislumbra um centímetro de concreto ou de cimento armado.
Neste momento voltamos ao brutalismo. Voltamos, porque os edifícios brutalistas que ao longo de décadas foram construídos pelo mundo afora, estão agora a ser ameaçados. Os setores mais retrógrados e conservadores detestam o brutalismo, chamam-no feio, dizem-no desengraçado e querem arrasar tudo o que encontram nesse estilo.
O que se passa, é que a sua imagem mental de um lar familiar não se coaduna com a arquitetura brutalista, que é moderna, tem o material à mostra e faz pensar.
Pense-se na Trellick Tower em Londres, edifício de 1972 e um dos melhores exemplos do brutalismo britânico. Pense-se em como se situa entre as zonas nobres de Chelsea e de Kensington e como a sua construção trouxe para o meio da cidade centenas de famílias de poucas posses. Pense-se igualmente como esses milhares de pessoas puderam usufruir do que de melhor tem a capital inglesa, ou seja, de museus, teatros, cinemas e boas escolas, tudo isso mesmo ali ao pé da porta.
Pense-se também como essa mistura de diferentes classes sociais, conjuntamente com o fácil acesso à cultura, a escolas e a universidades, foi um terreno altamente fértil para o surgimento de questões, de dúvidas, de inovações e de discussões nada tradicionais à hora de jantar.
É certo que ao início houve conflitos, desarranjos e incidentes, pois essas zonas eram das mais queridas dos que muita riqueza possuem, mas depois tudo mudou e hoje em dia a Trellick Tower é um caso de sucesso e foi até elevada à categoria de edifico classificado.
Atualmente a torre é um ícone, já apareceu em inúmeros filmes de sucesso, até nuns de Hollywood, surge em anúncios publicitários de grandes marcas, falam dela em canções e os escritores referem-na nas suas obras de ficção. Há poemas que a cantam, vendem-se t-shirts com a sua silhueta e organizam-se visitas turísticas ao seu interior.
Aqui fica uma curta-metragem de quatro minutos, na qual se fala de Trellick Tower quase como se fosse um edifício místico:
É contra este tipo de progressos e de ideias novas, seja na arquitetura, seja noutros setores, que os movimentos retrógrados se levantam. Por vontade deles, lares construídos num estilo arquitetónico como o brutalismo jamais teriam existido.
Para os retrógrados tais inovações são um sacrilégio. Onde é que já se viu misturar-se centenas de famílias num mesmo prédio, no meio da cidade, aproximando ricos e pobres, fazendo assim com que a troca de ideias distintas exista, e com que as pessoas se encontrem, discutam, debatam, inventem e inovem! É coisa que não pode ser, pois que de certeza absoluta vai abalar a paz do lar e estragar a santa hora de jantar.
Na verdade, os retrógrados, que se apresentam como paladinos da História, adoram reescrever o passado, e é por essa razão que não se cansam de defender que muitos dos edifícios brutalistas têm de ser demolidos. É uma campanha que levam a cabo pelo mundo inteiro, sobretudo no ocidente. Mal sabem de uma construção com o cimento à mostra, imediatamente o querem arrasar ou requalificar para que fique mais lindinha e com um aspeto mais bonito e tradicional.
É de tal maneira a sua sanha contra o brutalismo, que já há um movimento internacional cujo objetivo é salvar esses edifícios: “SOS BRUTALISM Save the Concrete Monsters!”.
E pronto, com isto cremos que fizemos o nosso ponto e que ficaram perfeitamente explicitadas as razões pelas quais gostamos de ir à bruta e de ver o material de fora.
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