Capítulo II - Como andar tristonho e mal-disposto em agosto…ouvindo Bruno Martino, chovendo no Rio e não só
Existe aquilo a que se costuma chamar música de verão, que por norma é alegre, vibrante, divertida e fresca. Não há quem não conheça uns quantos êxitos musicais, que o foram sob o calor do sol e ao som das ondas do mar. Contudo, o que muito menos gente conhece, são canções cujo assunto principal é o desprezo total e absoluto pela época estival.
E é precisamente este, o tema deste segundo capítulo da nossa série de verão, “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto”. Vamos hoje fazer um tour melódico, por canções que nos falam de desgostos, cuja causa é o verão. São temas cantados num tom magoado de dor e de pranto, que certamente deixarão os que as ouvirem, tristonhos e mal-dispostos.
Se ontem, no primeiro capítulo desta série, optámos por vos falar de um filósofo grave e complexo, Schopenhauer (https://ifperfilxxi.blogspot.com/2024/07/capitulo-i-como-andar-tristonho-e-mal.html ), hoje, de modo oposto, vamos falar-vos de música ligeira e simples. No entanto, apenas de cantigas onde o tom é sorumbático e macambúzio, e onde simultaneamente se desdenha do verão.
Nesse contexto, não conhecemos nenhuma música mais explícita e triste, que um tema de Bruno Martino, cujo refrão é “odio l’estate”. Quem não domine a língua italiana, pode ser levado a crer, que o refrão da canção tem algo a ver com ter ódio a estátuas, mas não, não é disso que se trata. “Estate” significa verão e portanto, o refrão da canção traduzido para português, seria “odeio o verão”.
Mais à frente já perceberão, que isto das traduções tem muito que se lhe diga.
Bruno Martino (1925-2000), cantor, compositor e pianista italiano, foi uma autêntica estrela internacional durante as décadas de 50, 60 e 70 do século XX. “Estate” atingiu um sucesso tal, que ao longo dos anos, muitos outros gravaram versões desse seu tema. Gente tão importante, como por exemplo, João Gilberto, Chet Baker, Shirley Horn ou Andrea Bocelli, têm a sua própria versão de “Estate” para apresentar.
Em “Estate”, o ódio à época estival advém de algures num verão já passado, o protagonista da canção ter vivido um amor, que nesse entretanto findou. Num só verso resume-se a situação: “Odio l'estate, Che ha dato il suo profumo ad ogni fiore, L'estate che ha creato il nostro amore, Per farmi poi morire di dolor" (Odeio o verão, que deu o seu perfume a cada flor, o verão que criou o nosso amor, Para em seguida me fazer morrer de dor).
Dadas as circunstâncias, o normal é que o protagonista da cantiga prefira o inverno, e é isso mesmo o que ele nos diz mais adiante, “Tornerà un altro inverno, Cadranno mille petali di rose, La neve coprirà tutte le cose, E il cuore un po' di pace troverà, Odio l'estate" (Virá um novo inverno, cairão mil pétalas de rosas, a neve cobrirá todas as coisas, e o coração uma certa paz encontrará, odeio o verão).
Mas chega de conversa, ouçamos “Estate” da primeira à última nota, legendada em italiano e com tradução para português a acompanhar. Como haverão de reparar, o vídeo que apresentamos com a canção é de uma tal empresa que se chama Leadership Idiomas, e que é especializada no ensino de línguas e em traduções.
A Leadership Idiomas escolheu legendar “Estate” e fazer tradução simultânea para publicitar a excelência dos serviços que presta. Até aqui está tudo muito bem, todos temos de ganhar a vida, o problema é que na Leadership Idiomas não sabem a ortografia correta do verbo italiano “odiare”, que se escreve apenas com um “d”, e não com dois como eles o fazem.
Bom, ao menos sabem que “Estate” significa verão e não estátuas, dado o facilitismo que atualmente há no ensino, já não é mau:
Todavia, Bruno Martino não se ficou por “Estate”, expressou também as suas diatribes contra o verão numa outra sua canção, “E la chiamano estate”. Neste tema Bruno manifesta o seu pasmo por todos chamarem verão ao verão. Ele anda tristonho e mal-disposto e não consegue conceber que toda a gente ande alegre e bem-disposta.
Nesta cantiga o problema já não está relacionado com o passado como na anterior, mas sim com o presente. O que sucede, é que, por uma qualquer circunstância da vida, o protagonista da história está destinado a passar o verão junto ao mar longe da sua amada. Tal facto perturba-o claramente, chegando mesmo a afetar-lhe o olfato, coisa que podemos verificar pelo verso “Il profumo del mare, non lo sento, non c'è più”.
Por outro lado, o mesmo protagonista, também não está muito para convívios estivais, pois dada a sua situação, olha para os restantes veraneantes, que tão contentes estão, com estranheza e distância, pois ele só sente ausência, enquanto os outros vivem, falam e amam: “Ma gli altri vivono, parlono, amano, E la chiamano estate, questa estate senza te”.
E disto isto, ouçamos então Bruno Martino, desta vez interpretando “E la chiamano estate”, onde nos confessa o que outros veraneantes não adivinham nem desconfiam: “Ma non sanno che vivo, ricordando sempre te”:
Mais deixemos Bruno Martino e passemos a um outro artista, a saber, Michel Fugain, um cantor francês de grande sucesso na década de 70, que tinha a particularidade de para além de cantar na sua língua materna, também o fazer em italiano. Ou seja, traduzia as letras das suas canções para a língua transalpina e, pasme-se, sem a ajuda do LeaderShip Idiomas.
O seu maior sucesso foi o single “Une belle histoire”, que em 1972 vendeu mais de um milhão de exemplares. A história que na canção se conta tem o seu quê de engraçado, uma jovem rapariga vem do norte de França em direção ao sul para passar férias ao sol, e um jovem rapaz vem na direção oposta, de regresso a casa.
Enquanto para ela as férias vão começar, para ele já se acabaram. No entanto, ambos circulavam na chamada “autoroute des vacances”, muito embora, como já se percebeu, o fizessem em sentido contrário.
Não sabemos lá muito bem como é que se arranjaram, mas o facto é que se encontram a meio do caminho e decidiram não pensar no amanhã. Vai daí, dirigiram-se a um campo de trigo nas redondezas, fora da vista dos outros condutores, e aí ficaram toda a noite, como se deduz do verso “Ils se sont quittés au bord du matin”.
Não cremos que estivessem estado toda a noite a refletir sobre problemas de agronomia relacionados com o trigo, não é crível, ainda assim, fosse lá o que estivessem estado a fazer, o que ambos tiveram sem dúvida foi sorte, pelo menos é isso o que nos diz a canção: “C'était sans doute un jour de chance”.
Como já dissemos, Michel Fugain dedicava-se a traduzir e a interpretar as suas canções em italiano, e claro está, assim o fez também com “Une belle histoire”, no entanto, o ponto é que onde a versão francesa nos falava de “un jour de chance” e de um breve mas feliz acaso, a versão italiana fala-nos de algo completamente diferente.
Com efeito, é a versão italiana a que se adequa perfeitamente a esta nossa série “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto”. Na dita versão, continua a existir uma autoestrada, só que o campo de trigo desvaneceu-se. O que acontece agora, é que ele e ela já não se encontram a meio do caminho por um acaso, mas passaram férias juntos.
Não que assim o tivessem previamente decido, pois antes do verão, nem sequer se conheciam um ao outro. Porventura encontraram-se na praia e passaram umas semanas em feliz e frutífero convívio, até que chegou a hora de partir e regressar a casa. Ambos se fizeram à autoestrada, mas foi cada um para seu lado, para o respetivo lar, que, ao que se deduz, não eram nada próximos um do outro.
Em suma, a “autoroute des vacances” da versão francesa que os uniu por uns breves instantes, passou na versão italiana a ser uma autoestrada que os distanciou para sempre, “la mia strada della vacanza segnerà la tua lontananza”. Digamos que cada um deles seguiu por uma variante distinta, um foi pela A33 e o outro pela A54.
O título da versão italiana é “Un’ Estate Fa”, ou seja, fez um ano, já foi no verão passado. Pelos vistos a personagem masculina da canção regressou ao lugar onde tinha passado o verão anterior, na esperança de voltar a encontrar a rapariga, mas tal não sucedeu e ele andou o mês inteiro a arrastar-se junto ao mar.
Também isso nos diz, que é mesmo a versão italiana a que nos convém, para andarmos tristonhos e mal-dispostos e não só em agosto, pois o protagonista da cantiga assegura-nos que tal estado de espírito se pode prolongar no tempo, ou seja, outono adentro: “un'estate in più che mi regalerà un autunno malinconico senza te”
Mas ouçamos então “Un’ Estate Fa”, igualmente com legendas, mas que desta vez não são da Leadership Idiomas:
Se nós fôssemos um programa de rádio íamos por aqui afora com tristes canções de verão, mas como não somos, deixamos só alguns títulos muito conhecidos, como por exemplo, “Cruel Summer”, “It might as well rain until September” e “Sealed with a kiss”.
Neste entretanto, no Brasil, como em todo o hemisfério sul, é inverno. Razão pela qual vos deixamos um último tema musical. É certo que o habitual é as melodias que têm como tema o Rio de Janeiro, celebrarem o sol, o mar, o calor e a praia, todavia, esta de Ivan Lins, celebra antes o outono e o início do inverno, a canção intitula-se “Rio de maio”.
E pronto, em breve neste blog, num outro dia, seguir-se-á o terceiro capítulo desta série de verão, “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto…”
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