Capítulo IV - Como andar tristonho e mal-disposto em agosto…e que tal visitar Charleroi e de caminho a Bélgica
A imagem com que iniciamos este texto é uma pintura que se intitula “Entrada de Cristo em Bruxelas”. É uma das mais famosas obras de arte belga. Atualmente faz parte da coleção do Getty Museum em Los Angeles, é uma das estrelas maiores dessa prestigiada instituição californiana.
“Entrada de Cristo em Bruxelas” foi executada por James Ensor em 1889. Algures na pintura, lá para o meio, é preciso procurar-se bem, vê-se Jesus a chegar à capital belga.
À sua chegada há fanfarras, desfiles, autoridades oficiais para o receber e muita gente nas ruas para o saudar. Compreende-se a euforia, pois não é todos os dias que Nosso Senhor Jesus Cristo, entra por uma cidade adentro. E com isto, já todos terão adivinhado que o nosso tema de hoje é a Bélgica.
Na verdade, bastava lerem o título para o saberem, mas nós gostamos que quem nos lê se sinta inteligente e perspicaz, e que pense que consegue adivinhar aquilo acerca do qual nós vamos falar.
Repetimos, e agora em francês, exclusivamente para os nossos leitores mais finos, “aujourd'hui c'est la Belgique”. Os nossos leitores menos cultos talvez não saibam que na Bélgica há duas línguas oficiais, é um país bilíngue, pois nele fala-se francês e neerlandês, e como se isso não fosse suficiente, também há muito quem fale alemão, embora seja 0,7 % da população que o tem como a sua língua materna. Em qualquer dos casos, lá se vão entendendo todos uns com os outros.
Abaixo uma imagem de uma obra do grande artista belga Marcel Broodthaers (1924-1976), cujo título é “Fémur d’homme belge”. Como já terão reparado pelo estilo, é uma obra da década de 60, mais concretamente de 1965, e nela aparecem as três cores da bandeira da Bélgica.
Nos primeiros três capítulos desta série intitulada “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto” falámos de um filósofo pessimista, Schopenhauer, de um cantor que odiava o verão, Bruno Martino, e de um realizador, Ingmar Bergman, cujos filmes são sempre assim a atirar para o triste e depressivo.
Aqui ficam os anteriores textos, para quem eventualmente não os tenha lido ou porventura queira fazer revisões:
Capítulo I : https://ifperfilxxi.blogspot.com/2024/07/capitulo-i-como-andar-tristonho-e-mal.html
Capítulo II : https://ifperfilxxi.blogspot.com/2024/07/como-andar-tristonho-e-mal-disposto-em.html
Capítulo III : https://ifperfilxxi.blogspot.com/2024/08/capitulo-iii-como-andar-tristonho-e-mal.html
Tendo nós falado de um filósofo, de um cantor e de um realizador, logicamente, vamos agora falar-vos de uma cidade e do seu país. Como até os nossos leitores menos clarividentes já há muito terão adivinhado, o tema de hoje é Charleroi e por arrasto, a Bélgica. Já sabiam, certo?
Charleroi é uma urbe fabril, em que a maior parte das fábricas há muito fecharam, tendo como consequência para a cidade uma dura e prolongada crise económica e social. Para além disso, Charleroi obteve a duvidosa honra de, num concurso internacional, ser considerada a localidade mais feia do mundo.
Estranhamente, o próprio site oficial do turismo da Valónia, região da Bélgica da qual Charleroi faz parte, adoptou essa designação, “A cidade mais feia do mundo”, sem problema algum.
https://www.brusselstimes.com/253311/official-wallonia-tourism-page-calls-charleroi-ugliest-city
Mas se a beleza Charleroi já não é lá essas coisas, a cidade ganhou ainda mais notoriedade aqui há uns quantos anos, e não por boas razões, mas sim por causa de um dos seus habitantes, Marc Dutroux, que era um raptor, um agressor de crianças e um assassino.
Dutroux mantinha as suas vítimas presas na cave de sua casa e à época foi notícia por todo o mundo. Enfim, é quase impossível que uma cidade pudesse ter pior fama. Abaixo uma foto do centro de Charleroi.
Dito isto, nos últimos tempos, a cidade tornou-se uma atração turística. Há gente de outros sítios, que porventura gosta de andar tristonha e mal-disposta, e escolhe Charleroi para ir de férias ou passear.
Pelos vistos há já em Charleroi tours organizados para visitar espaços industriais encerrados, onde o mais que se pode ver é a contínua acumulação de milhares de quilos de sucata e de ferrugem.
Há também visitas as estações de metropolitano completamente abandonadas, e ainda excursões que consistem em subir às colinas em redor da cidade, e lá do alto, observar as poucas chaminés fabris que ainda funcionam e resistem, a cobrirem Charleroi com espessas nuvens de fumo.
Para quem estiver interessado, aqui fica um site com sugestões dos tours propostos para o verão de 2024:
https://www.trotop.be/en/charleroi-safari-2/
Charleroi é certamente um sítio triste e depressivo, sendo que no resto da Bélgica há belos monumentos, excelentes museus e cidades históricas e lindas como Bruges ou Ghent, no entanto, e por alguma razão que desconhecemos, há algo nos belgas que os faz andar frequentemente envoltos numa aura cinzenta e taciturna.
Provavelmente, o melhor escritor belga é Hugo Claus (1929-2008), sendo que o seu mais célebre romance se intitula “O Desgosto da Bélgica”. O livro relata-nos a história de uma família belga, que durante a Segunda Guerra Mundial escolhe colaborar com o regime nazi, e isto aquando da invasão da Bélgica pelos exércitos hitlerianos.
O mínimo que se pode dizer, é que o retrato feito pelo escritor do seu povo é impiedoso, deixando qualquer um, belga ou não, bastante tristonho e mal-disposto.
Imaginem que o maior e melhor escritor português, a escolha de quem o é, fica ao vosso critério, se dedica a redigir um romance em que desbasta nos portugueses de alto abaixo.
Imaginem que tal obra alcança um grande prestígio internacional, e no estrangeiro todos a leem. Já viram bem o tamanho do escândalo? A vergonha! O que diria o Presidente Marcelo e os comentadores nas TVs?
Pois bem, foi isso mesmo o que sucedeu na Bélgica, só que ainda assim, Hugo Claus foi no seu país coberto de distinções e prémios.
Mudemos de assunto. Recentemente houve um filme belga, que foi eleito pelos críticos de cinema de todos os cantos do mundo, como sendo o melhor de sempre. A escolha foi absolutamente surpreendente, pois ninguém estava à espera que por um qualquer alinhamento dos astros, e assim de repente, uma obra tão difícil e pouco conhecida, ascendesse à ribalta internacional.
O titulo do filme é “Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080, Bruxelles” e foi realizado em 1975 pela cineasta belga Chantal Ackerman.
O filme retrata os dias de Jeanne Dielman, mulher e mãe, que sozinha cuida de um filho adolescente. É esta a história do filme, as rotinas diárias de Jeanne. A personagem representa uma vulgar dona de casa belga, que pela manhã prepara o pequeno-almoço para o filho, depois vai às compras para a casa, faz as limpezas domésticas e, ao fim do dia, cozinha o jantar. Repete continuamente estas mesmas atividades, sendo que, a película dura três horas e vinte e um minutos.
A meio da tarde, quando o filho ainda está na escola, Jeanne recebe muito discretamente em sua casa, homens que pagam pelo serviço que ela lhes presta. Depois disso limpa e arruma tudo muito meticulosamente, de modo que não haja o mínimo vestígio de que recebeu visitas.
Quer o filme de Chantal Ackerman, quer o livro de Hugo Claus, quer a cidade de Charleroi, parecem emanar uma profunda tristeza, contudo, e simultaneamente, tudo isso parece estar envolto numa atmosfera de perfeita normalidade, como se o andar-se triste e acabrunhado, sem a menor esperança que o futuro possa vir a ser diferente, fosse algo de corriqueiro e banal.
Abaixo fica um link onde se explica por qual razão o filme “Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080, Bruxelles” foi recentemente eleito o melhor de sempre. No fundo, o que verdadeiramente aí se explica, é o porquê de nas sociedades ocidentais se ter deixado de acreditar no futuro, e se acha agora, que já nada há a fazer e a esperar, que não seja o repetir-se continuamente os mesmos e vulgares gestos do dia a dia.
A região de Ostend é para a Bélgica, o equivalente ao que o Algarve é para Portugal, ou seja, o sítio onde se vai a banhos durante o verão. Mas dito isto, a diferença é imensa. Com isto não nos referimos à temperatura do ar ou da água do mar, que em Ostend são mais frias do que no Algarve.
Mas já lá vamos a isso, primeiro vejamos uma imagem do extenso, dourado e fino areal de uma das praias de Ostend.
No Algarve desde que não chova, não haja vento e a água do mar esteja quente, a malta anda contente e não precisa de mais nada. Já em Ostend, a coisa é diferente. Mesmo sendo uma zona balnear e de veraneio, quem lá vai passar férias, e são muitos os que o fazem, para além de ir a banhos, aprecia também entreter-se com arte contemporânea e com as depressivas obras que os artistas do nosso tempo criam.
Como já todos terão percebido os belgas são especiais, vai daí, foi precisamente em Ostend, bem junto à praia, que decidiram instalar um museu de arte moderna e contemporânea, o Mu.zee
Já agora, só para que possam perceber a dimensão da graça, zee em inglês significa sea, e em português mar. Mu.zee, não sabemos se apanharam? Em qualquer dos casos, aqui fica o site da prestigiada instituição, que à beira-mar, mostra aos veraneantes arte moderna e contemporânea:
Recordam-se de James Ensor, o pintor do quadro “Entrada de Cristo em Bruxelas”? Então não é que o homem era de Ostend! Desta é que não estavam à espera, pois não?
Sendo de Ostend, que lembre-se fica junto ao mar, um dos seus temas favoritos era o peixe. Tanto que o artista gostava de ir à praça e à lota e ver as raias, os safios, as sardinhas e demais seres aquáticos.
Depois James Ensor levava-os para casa, pintava-os, e de seguida comia-os, fritos, grelhados ou assados. Que maravilha devia ser, nada a ver com ir ao Oceanário ou ao Zoomarine, sítios donde nem sequer uma petinga ou jaquinzinho se pode trazer.
Em Ostend há um museu dedicado a James Ensor, local onde se pode ver tantos de peixes como nas bancas da praça.
Em resumo, cremos já vos ter dado muitos motivos para ficarem tristonhos e mal-dispostos, a Bélgica é um sítio óptimo para tal. No entanto, queremos findar com a mais triste canção de sempre, que foi cantada por um belga, que claro está, é Jacques Brel.
O tema é “Ne me quitte pas”. Os nossos leitores mais finos, certamente compreenderão todo o desespero do rapaz, pois ele fala num francês límpido e claro. Os nossos leitores menos cultos terão que ir ao Google Tradutor, mas vale a pena, pois que a letra da cantiga é lindíssima. A interpretação de Brel é igualmente excelente. É tão emocionante, que é capaz de nos deixar tristonhos e mal-dispostos durante todo o mês de agosto:
E pronto, em breve neste blog, num outro dia, seguir-se-á o quinto capítulo desta série de verão, “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto…”
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