Falávamos no nosso anterior texto, das palavras, da sua infinitude e da imensa riqueza que é a existência de inúmeras línguas, pois cada uma delas corresponde a uma visão do mundo, a um vasto horizonte.
Contudo, também referimos que há agora quem deseje que não se conheçam assim tantas palavras e prefira que não se saibam muitas línguas, ou seja, que não se veja muito longe.
No fundo, alguém que assim o prefere, provavelmente sente-se ameaçado pela extensão do mundo, pelas tantas gentes diferentes que nele há e pela amplidão do conhecimento. Assim sendo, defende-se dos seus receios e entrincheira-se na sua restrita visão da realidade, como se essa fosse a única válida.
Esse alguém será portanto pessoa de poucas palavras e que opta categoricamente pelas vistas curtas, pois é diante uma concepção circunscrita da vida e do universo que se sente segura e tudo lhe parece ser perfeitamente compreensível.
Aqui fica esse nosso texto anterior:
A tentativa de reduzir a visão da vida e do universo a um cantinho sossegadinho onde as palavras não sejam muitas, não é coisa nova na história da humanidade, digamos que é até recorrente.
Há e sempre houve quem queira controlar e limitar o que é dito e escrito e, por consequência, o que é visto e compreendido. Há e sempre houve quem queira reduzir a infinitude das palavras a umas poucas quantas e não a mais do que essas.
A censura, nos seus múltiplos modos e diversas formas, nunca desapareceu. Em certos lugares e momentos todos a veem a olho nu, pois está oficialmente institucionalizada, no entanto, noutras ocasiões e sítios, anda bastante mais disfarçada e é assaz subtil.
Mas mesmo nos casos em que a censura anda mascarada, quem quiser olhar com atenção e verdadeiramente ver, certamente que a verá. Abaixo um desenho de Quino (1932-2020).
Quino foi um artista do desenho, tendo praticado a sua arte em BD’s e cartoons. A sua personagem mais conhecida é a famosa Mafalda, porém, não é dela de que hoje vos queremos falar. A nossa ideia é centrarmo-nos em Quino como um visionário, ou seja, falarmos de um homem com extensos horizontes.
O problema de Quino foi ter nascido, crescido e vivido parte significativa da sua existência, num país que durante bastante tempo esteve subjugado por regimes ditatoriais, a saber, a Argentina. No país das Pampas as ditaduras sucederam-se umas às outras, sendo que a última delas, de cariz militar, foi a mais terrível de todas.
Quino viveu em períodos onde as palavras foram fortemente controladas e limitadas, e não só por isso, mas também por isso, foi a desenhar que conseguiu arranjar formas de dizer o que sentia ter para dizer.
Como todos sabemos, ao dia de hoje, há pelo mundo afora países onde existem ditaduras e censuras ferozes, porém, no ocidente, na larga maioria das nações pertencentes ao continente europeu e ao americano, a censura já não se exerce de forma oficial, não está portanto institucionalizada. Contudo, há um outro problema, que não é menor: as palavras estão inquinadas.
É só ver a quantidade de “Fake News” que diariamente são propagadas, para o percebermos. Para além disso, há toda aquela enormidade de palavras que se publicam nas redes sociais (e não só) que não querem dizer nada, são tão-somente ruído.
Digamos que a censura, que oficialmente não o é, se exerce agora através de uma enxurrada de palavras. No meio da imensa quantidade de “Fake News” e de frases que não querem dizer nada, palavras importantes e decisivas possuem poucas hipóteses de ser escutadas.
Basta ir a uma qualquer rede social ou ver TV, para se compreender que muito daquilo que se diz e escreve são completas falsidades, inanidades ou mesmo imbecilidades. Assoberbados por essa extensa maré de vão palavreado, as palavras parecem-nos inquinadas de insignificância.
Agora todos parecem contribuir para produzir palavras inquinadas, que não significam nada, que são falsas ou absolutamente inúteis. É estarmos por um tempo num qualquer café e olhar em volta. Na televisão, no telemóvel, no computador ou no tablet, são enxurradas de palavras as que estão a ser ditas e escritas, sendo que a maior parte delas ou são falsas, ou não servem para coisa nenhuma, ou são imprestáveis.
Aqui fica mais um desenho de Quino, que ilustra essa buliçosa atividade.
Na verdade esse é um dos principais problemas da atualidade: a enxurrada de palavras que constantemente nos chegam a toda a hora e de todo o lado. A censura tradicional controlava e limitava o que era dito ou escrito. Agora, como que as palavras estão limitadas logo à partida, pois sendo tantas e tantas, no imenso amontoado como que perdem a sua consistência e significado.
Com efeito, vivendo com uma constante enxurrada de palavras, mesmo que entre elas haja algumas dignas e profundas, estas acabam por passar despercebidas, ou então, são confundidas com todas as restantes, inclusivamente com aquelas que pouco ou nada dizem.
E mais uma vez, um desenho de Quino.
Por haver uma incontrolável enxurrada de palavras, mesmo as mais exactas, necessárias e urgentes, acabam por passar em claro e ficar perdidas, inquinadas pela insignificância.
Por assim ser, quem quer agora fazer-se ouvir, julga que o melhor é gritar e ser assertivo nas suas palavras. Crê que desse modo, ou seja, falando bem alto e de forma autoritária, fará com que as suas palavras se destaquem do amontoado global.
Na verdade, há atualmente cada vez mais gentes e grupos sociais a elevar o tom e o som das suas palavras, a principal consequência é que ninguém consegue ouvir os outros, cada um só se ouve a si mesmo.
Será por tudo isto, que por todo o ocidente as posições se vão cada vez mais radicalizando, no intenso remoinho de falsidades, inanidades e imbecilidades, todos se censuram a todos num imenso torvelinho de palavras, em que ninguém ouve ninguém e todos gritam ferozmente na tentativa de se fazerem ouvir e imporem a sua razão.
Contra este mundo de palavras inquinadas, um outro desenho de Quino.
Não é de estranhar que esse mesmo mundo ocidental onde se apregoa a democracia e a liberdade como um pilar fundamental, seja um lugar em que cada vez mais há um afã de proibir.
Dir-se-ia que todo este afã de proibir, na realidade não é mais do que um pedido para que haja alguma tranquilidade e silêncio.
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