Falámos ontem de pares constituídos por gente com muitas afinidades entre si. Falámos tanto de duplas trágicas, como por exemplo a formada por Van Gogh e Gauguin, como também de duplas que deixaram obra e igualmente de duplas românticas como Bogart e Bacall, e por fim e ainda, de duplas cómicas, tipo o Bucha e Estica ou o Tom e Jerry.
Tudo isso foi uma espécie de intróito a esta presente segunda parte e pode ser lido em:
Hoje vamos dedicar-nos exclusivamente à dupla constituída por Pardal Monteiro (1897-1957) e Almada Negreiros (1893-1970). Um era arquitecto, o Pardal, e ficou conhecido como o primeiro moderno de Lisboa, o outro, o Almada, era poeta, artista, futurista e tudo.
Aqui fica um retrato de Pardal, que se ri…
…e um retrato de Almada que faz o mesmo.
Os astros alinharam-se para que estes dois homens tão diferentes, se encontrassem algures no caminho, e juntos tivessem conseguido trabalhar e deixar umas quantas obras para a história.
Almada era o filho primogénito de gente selecta, proprietária de terras, com posses financeiras e pretensões intelectuais. Pardal veio de uma família de pedreiros de Pêro Pinheiro, foi o sexto filho a nascer e a seguir a ele outros vieram.
Não era provável que estes dois se viessem a encontrar, mas o que certamente ninguém adivinharia, era que viessem a ter tanta afinidade entre si e que fizessem uma tão rara e bem sucedida dupla. Vejamos por onde ambos andavam, antes dos astros se alinharem e os dois se encontrarem. Comecemos por Almada.
Almada abominava o lado manso e vegetal de Portugal, essa mania nacional de se viver como habitualmente. Detestava ainda de forma mais intensa essa particular característica portuguesa, no contexto das artes e letras.
Para Almada, o à época afamado e muito prestigiado médico, político, diplomata, dramaturgo e poeta Júlio Dantas, era o símbolo máximo da pasmaceira da pátria, razão pela qual, decidiu escrever o “Manifesto Anti-Dantas”.
O Júlio Dantas foi Ministro da Educação, Ministro dos Negócios Estrangeiros, embaixador no Brasil e, para além disso, escreveu romances de grande sucesso, poesia que se vendia bem e estrearam peças suas no Teatro Nacional.
O Dantas era portanto alguém de grande categoria e a quem todos prestavam altas honras. Foi precisamente por ocasião da estreia de gala de uma peça teatral do Dantas, que o Almada se atirou a ele e fez sair um manifesto.
Almada tinha tão-somente vinte e três anos à data da publicação do “Manifesto Anti-Dantas”, mas tornou-se imediatamente muito conhecido, tendo a partir daí passado a ser um personagem que aparecia com frequência nos jornais e sempre a propósito de polémicas, zaragatas e controvérsias.
O Manifesto Anti-Dantas foi todo escrito em maiúsculas e nele constam umas tantas críticas construtivas e sensatas que o Almada fez ao Dantas. Vejamos umas quantas:
- O DANTAS SABERÁ GRAMÁTICA, SABERÁ SINTAXE, SABERÁ MEDICINA, SABERÁ FAZER CEIAS P'RA CARDEAIS, SABERÁ TUDO MENOS ESCREVER QUE É A ÚNICA COISA QUE ELE FAZ!
- O DANTAS VESTE-SE MAL!
- O DANTAS USA CEROULAS DE MALHA!
- O DANTAS NASCEU PARA PROVAR QUE NEM TODOS OS QUE ESCREVEM SABEM ESCREVER!
- O DANTAS NU É HORROROSO!
- O DANTAS CHEIRA MAL DA BOCA!
- SE O DANTAS É PORTUGUÊS EU QUERO SER ESPANHOl!
No manifesto há muitas mais passagens deste tipo, todavia, o que nos importa realçar é que as diatribes do Almada contra o Dantas eram-no também contra Portugal, pois o Dantas para ele era o símbolo supremo da nação mansa e vegetal.
Para que não houvesse equívocos, Almada diz que o seu manifesto é anti-dantas, mas não apenas anti-ele, é também contra “ todos os Dantas que houver por aí”. Para ser ainda mais claro, Almada no final do manifesto escreve o seguinte:
PORTUGAL QUE COM TODOS ESTES SENHORES, CONSEGUIU A CLASSIFICAÇÃO DO PAÍS MAIS ATRASADO DA EUROPA E DE TODO O MUNDO! O PAÍS MAIS SELVAGEM DE TODAS AS ÁFRICAS! O EXILIO DOS DEGREDADOS E DOS INDIFERENTES! A ÁFRICA RECLUSA DOS EUROPEUS! O ENTULHO DAS DESVANTAGENS E DOS SOBEJOS! PORTUGAL INTEIRO HÁ-DE ABRIR OS OLHOS UM DIA — SE É QUE A SUA CEGUEIRA NÃO É INCURÁVEL E ENTÃO GRITARÁ COMIGO, A MEU LADO, A NECESSIDADE QUE PORTUGAL TEM DE SER QUALQUER COISA DE ASSEADO!
Uns anos depois do manifesto, num dia frio de dezembro de 1917, Almada Negreiros redigiu e fez publicar nos jornais um ultimato futurista às gerações portuguesas do século XX, causando novamente sensação.
Numa dado momento do texto, dizia ele assim: “O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades.”
Se o Almada era um inconformista com alma de revolucionário, Pardal Monteiro era quase o contrário, sendo um homem atinado, modesto e discreto. Casa-se cedo, arranja um emprego e com apenas vinte sete anos de idade e ainda pouca experiência, é-lhe confiado o projeto da Estação do Cais Sodré, edifício que ainda hoje lá está.
Mas a maior surpresa veio depois, tendo somente trinta anos, o regime de então entrega-lhe o projeto da mais ambiciosa obra pública da época, o Instituto Superior Técnico.
Ninguém poderia prever, que a maior e mais onerosa empreitada desse tempo, seria entregue assim, sem mais, a um jovem arquiteto. O próprio Pardal ficou apardalado e disse ao ministro responsável pelo empreendimento se não queria pensar melhor, se não seria preferível fazer-se antes um concurso.
A isso o ministro respondeu-lhe o que se segue: “Tenho a seu respeito boas informações dadas por pessoas que me merecem a maior confiança. Você é o arquitecto que eu e o Conselho escolhemos. Portanto só tenho um caminho a seguir: entregar-lhe o projecto para o Instituto ou confiar este trabalho a um arquitecto estrangeiro, portanto escolha."
Pardal escolheu e lá acabou por projectar o Técnico e a alameda que o enquadra, dir-se-ia que não se saiu mal.
Uma vez concluída a obra, Lisboa divide-se. Uns acham que sim senhor, outros acham o edifício demasiado moderno. Porém, o facto é que o Técnico se transforma na primeira obra de arquitetura moderna com impacto na cidade e no resto do país, por todo o lado se ouvindo falar dele.
Sinal disso mesmo, é a cena do filme "Maria Papoila", que à época fez um imenso sucesso, na qual se vê uma ingénua provinciana, que chega a Lisboa para servir, e que de repente se encontra na parte moderna da cidade, precisamente na escadaria do Técnico.
Antes de continuarmos com Almada e Pardal, um intervalo. Paramos para vermos e ouvirmos Maria Papoila a cantar os versos “Adeus, ó terra, adeus linda serra de neve a brilhar. Adeus, aldeia que eu levo na ideia não mais cá voltar” e, mais à frente, o excerto em que diz “Não me importo de ir à toa que o meu sonho é ver Lisboa mais o mar que eu nunca vi”.
Pelos vistos, chegada a Lisboa, Maria Papoila não só foi logo ver o mar, como acabou também por ir ver o Técnico. Aqui fica a canção por todos cantada durante a viagem nocturna de comboio da aldeia para a cidade. Só um não cantou, pois esse o que o mais que queria era ir dormir:
Estamos então em Lisboa na década de 30, os astros alinham-se e Almada e Pardal encontram-se. Como já vimos, o primeiro era oriundo de uma família de gente abastada e ilustrada, e o segundo tinha origem numa humilde família de pedreiros. Uma vez crescidos, Almada tornou-se um boémio, um artista, um futurista e de vanguarda, que frequentava os cafés e sobretudo a Brasileira ao Chiado, local onde passava o tempo a fazer graças e a desenvolver as mais extravagantes teorias. Pardal, por outro lado, era o Senhor Arquiteto, o respeitado homem que tinha desenhado o Técnico. Tudo os separava, no entanto, ao encontrarem-se descobriram logo enormes afinidades.
Abaixo uma pintura com um grupo à mesa do café A Brasileira. Nela se pode ver à esquerda Almada Negreiros, que foi quem a pintou. Há duas versões deste quadro, uma encontra-se em exposição no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, a outra está pendurada numa parede do café A Brasileira ao Chiado.
Em 1938 Pardal Monteiro foi encarregado de projetar a Igreja de Nossa Senhora de Fátima, que viria a ser construída na Avenida de Berna em Lisboa. Tendo a obra a seu cargo, Pardal convidou Almada para desenhar os vitrais. Trabalhando juntos, Pardal e Almada não se limitaram a dividir tarefas. O que um projetava estava intimamente ligado ao que outro desenhava e vice-versa.
Uma vez a igreja erguida, estalou a polémica. Pardal era um homem sério, mas uma vez tendo descoberto afinidades com Almada, tornou-se mais dado a disrupcões. A modernidade do edifício transtornou os lisboetas. Que um edifício destinado a formar engenheiros pudesse ser moderno, vá que não vá, agora uma igreja? Isso é que já não podia ser.
A defesa de Pardal e Almada veio de onde ninguém esperava: o cardeal Cerejeira, patriarca de Lisboa, para acabar de vez com a discussão, lembrou que "todas as formas artísticas do passado foram modernas em relação ao seu tempo".
Após uma igreja, por que não um jornal. Assim sendo, um ano depois, Pardal e Almada juntam-se novamente para desenhar, conceber, decorar e erguer a sede do Diário de Notícias, situada ao cimo da Avenida da Liberdade, mesmo junto à Praça Marquês de Pombal. No interior, Almada desenhou um enorme mapa-mundo com 54 metros quadrados representando os quatro elementos, água, fogo, terra e ar; e um mapa de Portugal, de 18 metros quadrados, com as quatro estações.
O Diário de Noticias foi primeiro edifico moderno erguido na principal avenida da cidade.
Damos agora um salto no tempo, e seguimos diretamente para finais da década de 50, princípios da de 60. Foi nesse período que Pardal e Almada trabalharam novamente juntos, desta vez para erguerem a Cidade Universitária de Lisboa.
É nas fachadas e interiores desenhados por Pardal, que encontramos os desenhos murais de Almada. Lá, estão os grandes mestres da antiguidade, tanto os legisladores e juristas, como os pensadores, como por exemplo, Platão. Também não faltam os escritores, Camões a salvar os Lusíadas, Camilo e Eça de Queirós e também Fernando Pessoa.
Dito isto, a verdadeira obra prima que resultou da afinidade e labor de Pardal e Almada, não foi uma, mas sim duas, a Gare Marítima de Alcântara e a Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos, que distam um quilómetro uma da outra, sendo ambas mesmo junto ao Tejo.
Aqui fica uma…
…e agora a outra.
Para as duas gares, Almada desenhou grandes murais, na Gare de Alcântara evocam lendas populares, como por exemplo a da Nau Catrineta, na Gare da Rocha do Conde de Óbidos, os temas remetem para o drama dos emigrantes no cais. Há também muitas cenas da vida ligada ao rio, nomeadamente, de varinas e pescadores.
O trabalho de Almada Negreiros nas gares é o maior e melhor conjunto mural existente em Portugal, um património único. Durante bastante tempo as gares estiveram fechadas, quase abandonadas, no entanto, estão finalmente a ser revitalizadas, para em fevereiro de 2025 abrirem ao público como Centro Interpretativo “Os Murais de Almada Negreiros”.
Quando as gares abriram, em meados da década de 40, causaram desagrado em múltiplos sectores do regime salazarista, isto porque os murais não retratavam a grande gesta dos Descobrimentos e os heróicos feito da nação lusitana.
Pior do que isso, nos murais aparecem carvoeiras, saltimbancos, artistas de rua a pedir esmola e pessoas descalças, para além dos já referidos pescadores, varinas e emigrantes. O regime sentiu-se afrontado, então os turistas estrangeiros chegavam a Lisboa, desembarcavam dos seus transatlânticos e a primeira coisa que viam era desse tipo de gente? Não podia ser.
Houve um forte movimento para que tudo fosse destruído, mas no fim acabaram por não levar a sua avante. Por falar nisso, também nós estamos no fim desta história em que dois seres, Almada e Pardal, que à partida nada os aproximaria, mas que descobriram entre ambos uma afinidade sem a qual uma certa Lisboa jamais existiria.
Terminamos com mais uma imagem de um mural de Almada e, enquanto se espera por fevereiro de 2025 e pela reaberturas das gares marítimas, pode-se ir fazendo uma visita virtual através do seguinte site: https://visitavirtual.portodelisboa.pt/pt/
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