Na imagem acima vemos uma pintura do vienense Gustav Klimt, “O hino à alegria”. Era uma vez uma cidade vibrante como nenhuma outra, onde se podia ir ao café para pôr a conversa em dia, e tanto se falava do orgasmo feminino como de fissão nuclear, e tanto se trocavam umas ideias sobre psicanálise como acerca de arte e arquitetura moderna. Essa cidade era Viena entre finais do século XIX e inícios do XX. Hoje a cidade é apenas a pacata capital da Áustria, mas houve um tempo em que foi o centro do mundo.
O que distinguia a Viena desse tempo de outras grandes capitais europeias, era o facto de a sua população ser em grande parte constituída por imigrantes originários das mais remotas partes do Império Austro-Húngaro. Pelas suas ruas havia húngaros, checos, eslovacos, sérvios, croatas, eslovénios e também judeus.
Em termos numéricos calcula-se que nessa época vivessem em Viena 400 000 checos, 140 000 húngaros, 100 000 ucranianos e 175 000 judeus vindos dos mais diversos países, mas sobretudo da Rússia.
Como se sabe, as culturas nutrem-se umas das outras, e quanto mais se misturam, mais crescem e se desenvolvem. Foi isso o que sucedeu em Viena entre finais do século XIX e inícios do XX, as ideias floresceram como nunca antes, e de repente escritores, políticos, artistas, cientistas e filósofos inventaram o mundo moderno, aquele em que ainda hoje habitamos.
Ponhamos como primeiro exemplo, a história de uma vienense nascida em 1914, que foi baptizada como Hedwig Eva Maria Kiesler, mas cujo nome pela qual ficou conhecida é o de Hedy Lamarr. Foi uma imensa estrela de Hollywood e durante as décadas de 40 e 50 era considerada a mulher mais bonita do mundo, tendo servido de modelo para a Branca de Neve da Disney.
A Branca de Neve de Walt Disney é a perfeita encarnação de uma jovem cândida, sonhadora e inocente, contudo, Hedy Lamarr não era nada disso, pois tinha nascido e crescido em Viena.
Quando tinha 19 anos e ainda vivia na sua cidade natal, Lamarr protagonizou o controverso drama romântico Ecstasy (1933) de Gustav Machatý, no qual se viu pela primeira vez um orgasmo feminino num ecrã. O filme causou tanto alarido que o então marido de Lamarr, Friedrich Mandl, tentou suprimi-lo, comprando todas as cópias existentes. Não conseguiu. Aqui fica a histórica cena:
Todavia, Hedy Lamarr foi também uma investigadora, tendo sido ela quem desenvolveu uma tecnologia, que mais tarde levaria ao desenvolvimento do GPS, do Bluetooth e dos telemóveis. Hedy Lamarr protagonizou o primeiro orgasmo feminino do cinema e é considerada a mãe do Wi-Fi, como muitos outros vienenses inventou o mundo moderno, o nosso em que atualmente vivemos.
A célebre cena do orgasmo feminino no filme Ecstasy de 1933 não surgiu por acaso, o facto é que esse tema era um assunto recorrente na Viena de então. Tudo terá começado em 1905 quando Sigmund Freud publica a sua famosa obra “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade".
A obra foi revista e republicada por várias vezes, até à sua edição final em 1925. O facto é que cada uma dessas ocasiões dava imediatamente origem a múltiplos artigos de jornal, a imensas conversas de café, a acaloradas discussões, a mesas-redondas e a desavenças e atritos.
Tudo isto porque no livro “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud decretou que o prazer e o orgasmo feminino de uma mulher madura e saudável estavam centrados na vagina. Acrescentou ainda que os orgasmos clitorianos eram imaturos, infantis e evidência de um qualquer distúrbio mental.
Como seria expectável, as teorias de Freud causaram uma enorme reação, sendo que muitas mulheres denunciaram a obsessão de Freud pelo prazer feminino através da vagina, como um estratagema para as subjugar.
Independentemente de se ter vindo a provar que o velho Doutor Sigmund se equivocou, o facto é que ele trouxe para a praça pública assuntos e temas que antes nunca ninguém sonharia discutir publicamente.
É também um traço característico do nosso moderno modo de viver, que foi inventado na Viena de outros tempos, o discutir-se abertamente não só a sexualidade, como igualmente problemas psicológicos e psiquiátricos, depressões, traumas e ansiedades.
Abaixo uma imagem do quadro do pintor vienense Egon Schiele (1890-1918) intitulado “O Abraço”.
Falemos agora de uma outra vienense, Lise Meitner (1878-1968). Meitner nasceu no seio de uma família judia e entrou para a Universidade de Viena em 1901. A partir daí haveria de desenvolver uma apurada investigação científica que a haveria de conduzir à descoberta da fissão nuclear. Ao longo da sua vida haveria de trabalhar em Berlim, em Estocolmo e depois no Reino Unido. Para muitos ela é a mãe da bomba atómica e da energia nuclear.
Hoje em dia o contributo das mulheres para a ciência é igual ou inclusivamente maior do que o dado pelos homens, todavia, naquele tempo isso não era assim. Só numa cidade tão livre, aberta e inovadora como era Viena na transição do século XIX para o XX, poderia surgir uma mulher de origem judaica que rivalizasse com cientistas homens.
Na imagem abaixo vemos Lisa Meitner na primeira fila, rodeada de cientistas tão eminentes como Niels Bohr, Werner Heisenberg ou Wolfgang Pauli.
As ideias vienenses impregnaram todo o mundo moderno. Da arquitetura a Hollywood, da publicidade moderna aos centros comerciais, dos orgasmos à fissão nuclear e às cozinhas equipadas, todos os aspetos da nossa história, ciência e cultura tiveram, de algum modo, origem em Viena.
Vamos a mais um exemplo. Victor Gruen nasceu em Viena em 1903, a sua família era judia. Formou-se em arquitetura e começou a trabalhar na sua cidade de origem na concepção e remodelação de lojas e espaços comerciais.
Anos mais tarde, com a anexação da Áustria pelos nazis, não lhe restou outra solução do que fugir para a América. É nos Estados Unidos que vai colocar em prática um conceito inovador, que não teve oportunidade de experimentar na sua Viena natal, a saber, o centro comercial.
Foi em 22 de março de 1954, que nos arredores de Detroit abriu o primeiro centro comercial do mundo, desenhado e concebido pelo vienense Victor Gruen. Nos anos seguintes desenharia mais uns quantos, como este na imagem abaixo situado no Minnesota.
Foi também uma vienense, Margarete Schütte-Lihotzky (1897–2000), que inventou o conceito de cozinha moderna, ou seja, concebeu um espaço no lar equipado com as máquinas, ferramentas e instrumentos necessários para se cozinhar.
A cozinha concebida por Margarete Schütte-Lihotzky foi baptizada como “A cozinha de Frankfurt” e era estreita de fila dupla medindo 1,9 m × 3,4 m. A entrada estava localizada numa parede curta, oposta à qual ficava a janela. Ao longo do lado esquerdo foi colocado um fogão, seguido por uma porta de correr ligando a cozinha à sala de jantar e de estar. Na parede direita estavam os armários e a pia, em frente à janela um espaço de trabalho.
Aqui vos deixamos um artigo de jornal que explica perfeitamente como uma arquiteta vienense moldou o modo como ainda hoje vivemos, The Frankfurt Kitchen Changed How We Cook—and Live:
Para se perceber como Viena era o centro do mundo nesse tempo, veja-se que chegaram a viver simultaneamente nessa cidade vários homens que determinaram o rumo do século XX e o destino de milhões, como Trotsky, Estaline e Hitler. No mapa abaixo podemos ver como não moravam muito longe uns dos outros:
Adolph Hitler também andava por Viena nestes tempos, mas detestava-a. Odiava os imigrantes que havia por todo o lado, sobretudo os judeus, e também tinha fortes sentimentos contra as inovações arquitectónicas e a arte moderna. É provável que também não apreciasse a psicanálise e os orgasmos femininos.
O homem andava por Viena, pois que tinha desejos de ser artista. Concorreu várias vezes à Academia de Belas Artes, mas foi sempre recusado. Outra coisa não seria de esperar, na verdade Viena era uma das capitais da arte moderna e os vienenses gostavam de pinturas inovadoras e radicais e não de coisas chochas, tradicionais e muito bonitinhas, como as que o jovem Adolph pintava. Abaixo a imagem de uma linda gravura de Hitler:
O problema foi que Hitler acabou eleito Chanceler, a Alemanha nazi anexou a Áustria e a diversidade cultural e social de Viena foi completamente eliminada. Após o final da guerra era uma cidade quase provinciana sem imigrantes, sem judeus, apenas com gente de origem germânica. A cidade é hoje em dia uma pacata capital europeia e nada tem a ver com o tempo em que era centro do mundo.
Aqui há uns meses neste mesmo blog, já tínhamos falado de Viena e do que esta trouxe às artes e letras. Foi lá que se inventou a literatura moderna, bem como a filosofia, a música e a arquitetura do nosso tempo. Não nos vamos repetir, mas quem quiser ler, pode fazê-lo em:
Terminamos aconselhando-vos um dos melhores livros de não-ficção do ano que agora finda, “Viena” de Richard Crockett. Lendo-o ficamos a perceber como uma cidade vibrante e inovadora, pôde rapidamente ser transformada num local tradicional e irrelevante. Lendo-o ficamos também a saber que é da troca e confronto de ideias e da mistura de culturas que nasce o futuro. Foi essa Viena cheia de imigrantes, de discussões e de inovações, que deu origem a esse futuro, que é o nosso atual presente.
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