Intitulámos
o nosso último texto neste blog “Hoje temos teoria da conspiração: Rua do
Benformoso n° 1”. Sendo que este de agora, será um segundo texto dedicado ao
mesmo exato assunto, ou seja, o tema do qual falaremos é idêntico ao do dito
primeiro. Só que, no escrito deste corrente dia, no título, ao invés de nº 1
como no anterior, temos o nº 2, e, para além disso, as palavras que dele
constam, também trocaram de lugar.
Para quem
eventualmente seja menos atento e não tenha entendido as mudanças que
anunciámos, vamos apresentar ambos os títulos sequencialmente, para que as
diferenças sejam perfeitamente evidentes.
- Hoje temos teoria da conspiração: Rua do
Benformoso n° 1
- Rua do Benformoso n° 2: hoje temos teoria da
conspiração
Quem nos lê,
há de certamente ter achado muito engenhoso da nossa parte, termos recorrido a
tais estratégias. Com esses procedimentos, fica-se a saber que há dois textos
distintos, a saber, o primeiro e o segundo, e para mais, toma-se igualmente
consciência, de que se pode falar em dois dias seguidos exatamente do mesmo
tema, mudando apenas a ordem das palavras e conseguindo de tal forma obter
títulos diferentes, ainda que afins.
Imagine-se
se Tolstoi no seu tempo usasse o nosso esquema! Caso assim tivesse sido, ao
invés de ter escrito apenas “Guerra e paz”, teria também redigido “Paz e
guerra”. E que dizer de Eça de Queiroz, que escreveu “A cidade e as serras” e
deixou por escrever “As serras e a cidade” por desconhecer esta nossa estratégia
. Isto para já não falar de Shakespeare, que podia muito bem ter composto uma
segunda parte da sua mais conhecida peça e intitulá-la “Julieta e Romeu”.
Enfim, foi
falta de lembradura de todos estes imortais autores, que ao contrário de nós,
em má hora não tiveram esta espetacular ideia. Em matemática isto designa-se
como propriedade comutativa. Propriedade pela qual, a ordem dos fatores não
altera o resultado final, como sucede por exemplo com 5X5, que dá exatamente o
mesmo que 5X5.
Uma vez feito este interessante intróito, voltemos ao nosso assunto, à atualmente tão falada Rua do Benformoso e à sua zona circundante, ou seja, o bairro da Mouraria.
Ao dia de ontem quisemos lembrar a quem nos lê, que esses locais da
cidade de Lisboa sempre foram mal-afamados, e que as gentes mais respeitadoras
da moral e dos bons costumes nunca levaram a bem a existência de tais sítios.
Terá sido também por isso, que em meados do século XX, uma extensa parte da Mouraria foi completamente arrasada, apesar de aí estarem erguidos alguns edifícios históricos, como por exemplo, a Igreja do Socorro, cuja construção datava de 1646.
A demolição
do coração da Mouraria para dar lugar à Praça do Martim Moniz, foi um dos
maiores erros urbanísticos de que há memória, tendo essa desastrada intervenção
deixado cicatrizes na cidade que se prolongam até ao dia de hoje. No entanto, e
mesmo assim tendo sido, tal é uma coisa de que pouco se fala, fazendo-se crer
que as feridas e problemas existentes naquela zona são recentes, e não o
resultado de uma longa história que se arrasta há largas décadas.
Talvez não
fizesse mal a quem atualmente clama que a Rua do Benformoso “é nossa”, ir ler um poucochinho de
História. Se lerem só a do século XX, verificarão que o bairro da Mouraria foi
castrado devido à já referida e absolutamente lamentável decisão urbanística
das autoridades da época, que para isso contaram com o beneplácito da igreja
católica, que não se importou nada de vender o seu património histórico, nomeadamente
a Igreja do Socorro sabendo de antemão, que o seu destino era o de ser pura e
simplesmente demolida.
Abaixo, uma
foto do espaço onde durante séculos se encontrava a referida igreja.
Mais ainda, se porventura os que clamam agora que a Mouraria “é nossa” se dedicarem a ler a História desde eras mais longínquas, e não apenas a partir do século XX, vão constatar que o próprio nome do bairro, se deve ao facto de D. Afonso Henriques, logo após ter conquistado Lisboa, ter destinado essa zona da cidade aos muçulmanos (mouros).
Em síntese, a Mouraria, incluindo a
Rua do Benformoso, foi originalmente habitada por mouros e em séculos
posteriores foi repetidamente mal tratada pelas nossas autoridades nacionais e
eclesiásticas, isto ao ponto de em determinado momento até a terem esventrado.
Por consequência disso tudo, o “é nossa”
é no mínimo historicamente desadequado.
Abaixo uma gravura de Roque
Gameiro (1864-1935) intitulada “Casas
na Rua do Benformoso”.
Há um grande escritor português
que não é tão lido como devia ser, o seu nome é Nuno Bragança (1929-1985). Um
dia ele escreveu um imenso romance, “A noite e o riso”. Não é um livro bem
comportado, muito pelo contrário, é uma obra-prima. Nela mergulhamos numa
Lisboa marginal e nocturna e desfolhamos páginas plenas de ironia e humor.
Nuno Bragança tem um enorme
fascínio pelo bas fond, e é no que ele designa como os “bairros anti-sabão”, tal e qual a
Mouraria, que ele vislumbra uma “Lisboa-aos-saltos
brutal, talvez infecciosa e hereditariamente carregada. Mas livre e solta como
um coelho corre o mato ao cair da tarde.”
Nuno Bragança descreve-nos uma
Mouraria de bares e dancings,
onde as pessoas que se veem nas ruas são homens que se envolvem em rixas, e
prostitutas que percorrem o alcatrão à procura de ganhar a vida. Um sítio
literário que contém uma certa dose de poesia misturada com copos e muito propício
a reflexões fadistas e existencialistas.
Na história de “A noite e o
riso” há um amor maior que tudo, assim como há muita noite e igualmente muito riso.
Todavia, são noites e risos cheios de álcool, como se beber fosse a única
resposta ao absurdo da vida e como se a Mouraria fosse o local ideal para tal.
Por tudo isto
que já hoje
dissemos, e também pelo que ontem tínhamos
dito em https://ifperfilxxi.blogspot.com/2025/01/hoje-ha-teoria-da-conspiracao-rua-do.html, percebe-se
que o bairro da Mouraria é e sempre foi um lugar de quem vive à margem, sejam estes
mouros, guitarristas e fadistas, prostitutas, existencialistas, quem anda nos
copos, artistas como Roque Gameiro, poetas, proxenetas, realizadores de cinema
como Fernando Lopes, escritores como Nuno Bragança ou emigrantes vindos de
outras terras e continentes, como por exemplo do Paquistão, do Nepal ou do Bangladesh.
Em tempos já lá idos, a RTP dedicava-se a produzir programas, que hoje seriam considerados inusitados, como por exemplo este cujo link abaixo vos deixamos.
O dito programa, intitulado "Fado da Mouraria", foi realizado nada mais nada menos por um intelectual de grande gabarito como era Jorge Listopad. E como se isso fosse pouco, Listopad foi acompanhado na concepção dessa emissão de TV pelo poeta Alexandre O`Neill.
Ora bem, os dois, Listopad e O`Neill, homens da mais alta cultura, não tiveram mais para onde ir do que para as tabernas e tascas da Mouraria. Não ficando contentes com isso, tiveram ainda de realizar um programa para a RTP para divulgar a toda a nação portuguesa a vida que se levava para esses lados. Enfim, outros tempos em que ainda não havia quem gritasse a Mouraria "é nossa":
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/fado-na-mouraria/
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