Andamos por estes dias a falar de alguns lugares da Ucrânia e da sua identidade e cultura, e isto para que de maneira nenhuma, os seus nomes sejam unicamente associados à presente guerra. Se antes falámos de Kharkiv e da sua peculiar Escola de Fotografia (https://ifperfilxxi.blogspot.com/2025/02/kharkiv.html), hoje falamos de Odessa.
Nada seria mais injusto de que associar o nome da bela cidade de Odessa exclusivamente a esta guerra, pois a muitas vezes chamada Pérola do Mar Negro é muito mais que isso.
Alexander Pushkin (1799-1837) é o grande poeta nacional da Rússia, o equivalente a Dante em Itália, Shakespeare na Grã-Bretanha ou Camões em Portugal. Pushkin morreu cedo pois pôs-se-lhe na cabeça participar num duelo por causa de desavenças de amores, o resultado foi que levou um tiro e faleceu. No seu caso, o dito “o que importa é participar” não se aplica. Todavia, antes de tudo isso, corria o ano de 1823 e Pushkin foi desterrado para Odessa.
Como já terão percebido o poeta tinha uma personalidade romântica e fogosa, e não raras vezes metia-se em chatices. Nessa ocasião, o problema foi ter defendido ideias muitos progressistas para a época e ser amigo dos responsáveis por uma tentativa de golpe contra o czar Alexandre I. Consequência de tudo isso, foi banido de Moscovo e enviado para o exílio, para a cidade mais a sul do Império Russo, ou seja, Odessa.
Pushkin não se enfadou muito com isso, pois considerava Odessa "A mais europeia das cidades russas". Nas cartas que escreveu a partir do exílio disse que Odessa era uma cidade onde "se podia cheirar a Europa. Fala-se francês e há livros e revistas europeias para se ler". Em síntese, não se deu mal. Abaixo um retrato do grande poeta russo.
Odessa sempre foi uma cidade dada às letras e, talvez por isso, a tenham procurado e nela vivido em algum momento das suas vidas, escritores tão importantes como Gogol, Tchekov, Tolstoi ou Gorki.
Porém, para além de ter servido de abrigo temporário a praticamente todos os grandes escritores russos, Odessa foi também a cidade natal de uma das maiores poetisas de sempre, Anna Akhmátova (1889-1966).
A vida de Anna Akhmátova não foi fácil, longe disso. Começou a escrever poesia aos onze anos de idade, mas o pai, um homem rígido e tradicional, receava que Anna desonrasse o nome da família, pois considerava os poetas uma ameaça à moral e aos bons costumes.
Anna teve de prosseguir a sua vida praticamente sozinha, mas ainda assim conseguiu arranjar forma de estudar em Kiev e em São Petersburgo. Em 1910 casou-se com o também poeta Nikolai Kumiliev.
Contudo, na União Soviética estávamos numa época terrível, e Nikolai Kumiliev por pouco mais ter feito que escrever poemas, seria executado pela polícia secreta em 1921.
Depois disso, Anna Akhmátova foi forçada a calar-se pois existiam ameaças, que ao seu filho Lev Kumiliev, pudesse suceder o mesmo que ao pai, ou seja, ser executado. Não o foi, mas Lev passou a maior parte de sua juventude, de 1938 a 1956 entre a prisão e campos de trabalhos forçados.
Dadas as circunstâncias, Anna Akhmátova não pôde publicar a sua poesia, e a solução que arranjou para continuar a escrever foi convidar amigos para decorarem os seus poemas. Assim, mesmo que os poemas não existissem em papel, pois até isso constituía um perigo de morte, existiam na mente daqueles que os tinham decorado.
Foi assim que tudo se passou até ao ano de 1952, quando regime soviético se tornou um pouco mais brando, e a poesia de Anna Akhmátova voltou a ser lida. Aqui fica o seu poema “O último brinde”:
Bebo à casa arruinada,
às dores de minha vida,
à solidão lado a lado
e a ti também eu bebo –
aos lábios que me mentiram,
ao frio mortal nos olhos,
ao mundo rude e brutal
e a Deus que não nos salvou.
Abaixo um retrato de Anna Akhmátova, uma moderna mulher de Odessa, pintada por Nathan Altman em 1914.
A mais famosa imagem de Odessa veio-nos do cinema, mais concretamente do filme “O Couraçado Potemkin”, obra realizada em 1925 por Serge Eisenstein. Tudo se passa nas grandes escadarias de Odessa que dão acesso ao porto e ao mar, onde estava ancorado o famoso navio rebelde, o couraçado Potemkin.
Serge Eisenstein inventou com o filme “O Couraçado Potemkin” uma nova forma de fazer cinema, o que o realizador compreendeu foi que o modo como se faz a montagem das imagens tem um poder expressivo e narrativo que até então ninguém tinha descoberto.
A forma como a cada imagem se segue uma outra imagem, o ritmo com que se intercalam, como a uma vista mais ampla tem como sequência um plano mais fechado e pormenorizado, e como as diversas perspectivas de um mesmo acontecimento se entrelaçam, criou uma nova linguagem cinematográfica cuja influência ainda hoje se faz sentir em muitos realizadores.
Na verdade, não haverá certamente um único estudante de cinema no mundo inteiro, que não tenha aprendido o que é a montagem vendo “O Couraçado Potemkin”, pois este filme é uma espécie de b-a-ba para quem quer que queira aprender a ler um filme. Aqui fica a famosa cena nas escadarias de Odessa, na qual se retrata o fuzilamento de civis desarmados às mãos das tropas governamentais:
Continuamos este nosso “tour” pela identidade e cultura de Odessa, e para o fazemos nada melhor do que dirigirmo-nos ao Museu de Arte Oriental e Ocidental, a mais importante instituição museográfica da cidade, que em 2023 completou um século de existência.
Atualmente, devido à guerra, as paredes do museu estão vazias, pois as obras de arte tiveram de ser protegidas, mas ainda assim, as principais podem ser vistas, só que em Berlim.
Para que as mais importantes obras de arte de Odessa não ficassem escondidas no bunker durante os anos de guerra e pudessem ser apreciadas, um museu de Berlim ofereceu-se para as recolher e dar a ver.
As obras de arte que estão no museu de uma qualquer cidade, com o tempo acabam por ficar ligadas à identidade desse local. Um exemplo flagrante disso mesmo é a Mona Lisa, o Louvre e Paris, ou, um outro exemplo, Madrid, o Prado e “Las Meninas” de Velasquéz, e por fim, ainda mais um, Roma e as esculturas de Bernini e os quadros de Caravaggio.
Quer Paris, quer Madrid, quer Roma não teriam a mesma identidade caso não tivessem determinadas obras de arte nas suas galerias e museus, sendo que o mesmo se passa com Odessa.
Claro que o museu dessa cidade da Ucrânia não possuiu obras de arte de fama mundial como estas que citámos, todavia, tem umas quantas bastante belas e raras.
Vejamos uma delas, “Ecce Homo”, obra de Bernardo Strozzi de 1625. Há milhares de representações intituladas Ecce Homo ao longo da História da Arte, contudo, a delicadeza da figura de Cristo, a graça barroca com que o seu corpo se abandona ao seu destino, bem como o rosto grotesco da figura à sua esquerda, fazem desta pintura um caso quase único.
Enquanto o corpo e o rosto de Cristo na sua alvura nos transmitem uma ideia de paz e serenidade, de modo oposto, o personagem da esquerda dá-nos a ver o rosto da barbaridade, da selvajaria e da desumanidade. Paz e barbaridade são dois rostos, que tanto outrora como agora têm marcado a história de Odessa.
Quem porventura quiser ver mais tesouros artísticos que existem no Museu de Arte Oriental e Ocidental de Odessa, agora expostos em Berlim, pode fazê-lo no vídeo abaixo:
As obras de arte do Museu de Arte Ocidental e Oriental de Odessa viajaram para Berlim, tal como, ao longo dos séculos, tinham viajado de várias partes do mundo até chegarem a esta cidade hoje ucraniana, antes russa.
Chamavam-na, a Odessa, uma cidade aberta, e por isso nela viviam imensos imigrantes albaneses, búlgaros, arménios, azeris, franceses, alemães, gregos, italianos, turcos, polacos e judeus. Odessa era uma confluência de povos vindos de todo o lado.
Os horrores de Odessa, como já vimos, não são apenas de hoje, para além dos de que já falámos houve um outro. Em 1905, por alguma razão, centenas de judeus foram mortos ou expulsos de Odessa, que na verdade, depois disso, nunca chegou a ter novamente o ar cosmopolita aberto e livre que tinha até então.
Grande parte deles fugiu para a América onde há pelo menos doze cidades chamadas Odessa. Mas para além de cidades, há também bairros, sendo o mais célebre o de Little Odessa em Nova Iorque.
E é com uma imagem desse pacato e simpático quarteirão de Brooklyn, onde russos, ucranianos, bielorrussos vivem em paz e alegria, que terminamos o nosso texto de hoje.
Comentários
Enviar um comentário