Corria o ano de 1879 quando em Kiev nasceu Kazimir Malevich, um homem que haveria de ficar para a História da Arte. A sua obra mais célebre intitula-se “Quadrado negro sobre fundo branco”, foi pintada em 1918 e foi um ponto de viragem que determinou tudo o que viria a seguir. De um certo modo, Malevich inventou a pintura abstrata.
O nome que Malevich deu ao seu tipo de pintura foi o de suprematismo, que posteriormente haveria se tornar um movimento artístico sistematizado, que integrou nas suas fileiras muitos outros elementos. O suprematismo centrava-se em formas básicas, sobretudo no círculo e no quadrado, e foi a primeira escola artística de pintura abstrata que alguma vez existiu.
Não foi portanto a partir das cosmopolitas cidades de Paris, Londres ou Nova Iorque que surgiu o mais moderno movimento artístico do início do século XX, mas sim vindo da criatividade de um rapaz nascido em Kiev.
"Eu sentia apenas noite dentro de mim, e foi então que concebi uma nova arte, a que chamei suprematismo." A citação é de Malevich e faz-nos perceber que as formas geométricas pintadas pelo artista não eram frias, matemáticas e racionais, mas que correspondiam a um profundo modo de sentir.
A primeira vez que o “Quadrado negro sobre fundo branco” foi mostrado foi em Petrogrado, hoje São Petersburgo. Abaixo vemos uma imagem fotográfica desse momento, sendo que, “Quadrado negro sobre fundo branco” foi colocado ao alto, num canto da sala, mesmo na intersecção entre duas paredes.
Muito embora a posição em que foi colocado “Quadrado negro sobre fundo branco” possa nada significar para um espectador que não esteja familiarizado com a religião ortodoxa, esse era o mesmo local sagrado onde os ícones ortodoxos de um santo ficariam numa casa tradicional russa e/ou ucraniana.
Esta equivalência não passou despercebida às gentes de Petrogrado da época. Malevich quis dar a ver que o “Quadrado negro sobre fundo branco” tinha um significado espiritual, e não era tão-somente uma abstração geométrica.
Só para que se perceba com mais evidência a semelhança, aqui fica a imagem de uma casa tradicional na qual, de acordo com a prática ortodoxa, o ícone do santo está colocado ao alto da sala, num canto.
Malevich referiu-se a “Quadrado negro sobre fundo branco” como o "zero das formas", como um profundo lugar escuro que absorve todas as formas reais e irreais, sejam as da natureza, sejam as mentais. O que pretende mostrar está para lá da realidade concreta e não é visível pelo olho humano. O seu intuito é representar algo de místico, algo que não pode ser visto, mas sim sentido.
Aqui há uns anos em Londres, mais concretamente na Tate Modern, foi recriada a exposição onde pela primeira vez tinha sido apresentado “Quadrado negro sobre fundo branco”, a hora zero da arte moderna. Aqui fica uma imagem a cores desse momento.
Como já todos terão percebido, a linguagem geométrica e abstrata que Malevich usava, estava intimamente relacionada com as tradições e espiritualidade do povo de que provinha. Significa isto que as suas figuras não eram motivadas por qualquer anseio de intelectualidade artística ou de racionalidade matemática, mas sim por um desejo de vislumbrar de uma forma nova e moderna o invisível, ou seja, esse sentimento de mistério e de transcendência que funda a vida dos indivíduos e dos povos.
A ligação de Malevich e da sua arte ao povo ucraniano é muito mais íntima do que aquilo que à primeira vista se possa pensar. Num primeiro olhar, há quem só veja na pintura de Malevich formas geométricas abstratas, todavia, um dia, a esse propósito, o artista recordou a sua infância e as visitas que fazia a uma aldeia próxima: “A aldeia dedicava-se à arte (embora na época eu não conhecesse essa palavra). Faziam-se coisas de que eu realmente gostava. Nestas coisas estava o segredo da minha simpatia pelos camponeses. Observei com grande entusiasmo como as camponesas criavam pinturas, espalhavam argila no chão das casas e faziam desenhos nos fogões. As camponesas representavam lindamente pássaros, cavalos e flores. Todas as tintas eram feitas no local…”
Malevich extraiu da cultura rural ucraniana a simplicidade, a cor e a clareza ornamental e geométrica das suas pinturas. Tal como os camponeses, ele preferia as cores básicas, a preta e a vermelha. Abaixo uma dupla imagens, à esquerda uma pintura abstrata de Malevich, à direita o desenho de uma boneca tradicional das regiões rurais da Ucrânia.
Malevich foi também grandemente inspirado pela estética das cabanas rurais das aldeias ucranianas, que eram quase totalmente brancas. É por demais evidente que essas habitações tradicionais desempenharam um papel bastante significativo no seu trabalho suprematista e cubista e, muito concretamente, em obras como por exemplo esta abaixo intitulada, “Branco sobre fundo branco”.
A partir de dado momento, Malevich, tal como sucedeu com muitos outros, foi perseguido pelo regime soviético. O motivo invocado pelas autoridades foi que a sua arte era demasiado subjectivista, coisa que lhe valeu ser sujeito durante semanas, a diversos tipos de torturas físicas. As mazelas resultantes desses tempos haveriam de o atormentar para o resto da vida, sendo mesmo delas que acabaria por falecer.
Mas se Malevich sofreu bastante, o povo ucraniano sofreu ainda mais. Entre 1932 e 1934 o regime soviético decretou que toda a produção agrícola da Ucrânia deveria ser entregue ao estado central. Essa decisão teve como consequência uma fome imensa, calcula-se que tenham morrido à mingua cerca de quatro milhões de pessoas.
Todo esse período ficou conhecido pelo nome de "Holodomor".
Mais uma vez, podemos pensar nas pinturas de Malevich como um simples jogo de cores e formas abstratas, olhemos por exemplo para esta abaixo:
Quando atualmente vemos esta pintura de Malevich, que se encontra no Museu Stedelijk em Amsterdão que se dedica à arte moderna e contemporânea, o mais certo é que nos concentremos nas formas e cores. Contudo, o facto de as camponesas representadas não terem rosto não foi apenas uma escolha formal e estética, mas foi também um modo de o artista mostrar o sofrimento a que o povo ucraniano foi sujeito durante a Grande Fome, o "Holodomor".
Talvez não seja despropositado pensar que o quadro "Branco sobre fundo branco" tenha alguma relação com os rostos em branco e o sofrimento das camponesas retratadas por Malevich.
E pronto, assim terminamos este nosso terceiro texto cujo objetivo, tal como os dois anteriores, "Kharkiv" (https://ifperfilxxi.blogspot.com/2025/02/odessa.html) e "Odessa" (https://ifperfilxxi.blogspot.com/2025/02/odessa.html)
é dar a ver aquilo que os noticiários não dão, a saber, que a Ucrânia é muito mais que um cenário de guerra.
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