Avançar para o conteúdo principal

Estamos num momento extremamente importante, assustador até, acho que chegámos ao clímax (segunda parte)



A frase acima foi título do nosso anterior texto, e é-o igualmente deste, uma vez que os dois constituem um todo. A dita frase foi dita por um repórter da RTP, quando acompanhava os acontecimentos do dia 25 de abril de 1974.

“Estamos num momento extremamente importante, assustador até, acho que chegámos ao clímax”, ouve-se logo no início do filme “Um corpo que dança” de 2022, uma película documental, que nos dá a ver imagens e nos põe a escutar sons da nossa vida coletiva, e muito concretamente da que vai desde 1965 a 2005. 
Fá-lo tendo como pano de fundo a história do Ballet Gulbenkian, cuja existência desde a fundação até à extinção, decorreu precisamente no período compreendido entre essas duas datas.


A RTP dividiu o filme “Um corpo que dança” em dois episódios, um que abarca os anos que vão de 1965 até 1975, e um outro que vai desde desse ano até 2005. Ambos estão disponíveis na RTP Play.

Aqui fica o primeiro episódio, e logo de seguida, o texto que a propósito dele antes escrevemos:



Posto isto, vamos agora dedicar-nos ao segundo episódio de “Um corpo que dança”.
Como já dissemos, este episódio inicia-se ali pela última metade da década de 70. Relativamente a esse período, temos no filme umas quantas cenas, que ilustram a situação que por cá então se vivia.

Há alguém que diz, que o dinheiro não chega para nada, que não resiste. Há também miúdos que vão à escola, mas só o tempo suficiente para aprenderem a ler e a escrever e, por vezes, nem isso. Em dado momento, numa qualquer reportagem televisiva, alguém pergunta a um rapaz, “já chumbaste muitas vezes, porquê?”, ao que ele responde, “por causa da brincadeira”.

Nesse entretanto, o Ballet Gulbenkian estreia por esse tempo uma coreografia de Vasco Wellenmkamp, com música de Carlos Paredes: “Danças para uma guitarra”. 

O êxito foi estrondoso, entre outras razões, porque pela primeira vez no mítico auditório da Gulbenkian, no próprio templo da cultura erudita e da dança, entrou a música popular. Esse foi um sinal mais do que evidente, que algo no país tinha definitivamente mudado, ou seja, que as hierarquias, classes, categorias e classificações já não eram tão herméticas e estanques como antigamente.


Também nesse mesmo entretanto, Portugal ia-se abrindo ao mundo, primeiro vieram as telenovelas brasileiras, que nos mostravam usos e costumes mais liberais do aqueles a que estávamos habituados, e simultaneamente começaram a aparecer discotecas, onde as gente iam dançar e ouvir sons vindos de fora.

Em determinado momento de “Um corpo que dança”, a propósito das novidades musicais que por essa altura vinham do estrangeiro, e nomeadamente acerca do Disco-Sound, ouve-se o seguinte comentário: “foi deste modo que meio mundo acabava os Anos 70 dançando com entusiasmo um ritmo cuidadosamente elaborado nos departamentos de mercado de empresas multinacionais.”

Como se subentende, quem à época fez tal comentário, não estaria muitos pelos ajustes com o cosmopolitismo que começava a despontar pelo país, apesar disso, os tempos eram mesmo de imparáveis mudanças, e com a chagada dos Anos 80 nada ficou como dantes.

“Era importante o Bairro Alto, era importante a literatura, era importante o cinema, e portanto os Anos 80 foram uma grande explosão”, diz-nos no filme, ao som de “Rua do Carmo” dos UHF, a bailarina e coreógrafa Olga Roriz.

"Tudo era demasiado poético e eu queria trabalhar sobre o confronto dos corpos, sobre os nossos problemas, e é aí que aparece a Nina Hagen", é isso o que nos diz Olga Roriz.
As coreografias de Roriz trazem algo de inédito aos palcos nacionais. Algo em que há referências à cantora germânica punk Nina Hagen, em que se escutam estranhos sons e em que os movimentos são bruscos e muitas vezes violentos. 

Sendo que no filme tudo isso se mistura com imagens de mulheres na lide diária, mulheres na venda do peixe, mulheres nas fábricas, mulheres a dar à luz e mulheres a manifestarem-se na rua a favor do aborto.

Em síntese, o Portugal de sempre, o país dos brandos costumes, parecia ter ficado para trás.


Mais à frente em “Um corpo que dança”, vê-se uma notícia de TV em que se fala de uma escola secundária da periferia, de fenómenos de marginalidade associados à juventude e de “break-dance”, em resumo, em Portugal, nos Anos 80, os corpos movimentavam-se, mas não como anteriormente.

Em 1985 Portugal entra para a então chamada CEE, a situação económica melhora e nasce por cá uma coisa que nunca antes tinha existido, uma sociedade de consumo. 

Expandem-se horizontes, desbravam-se caminhos, o Ballet Gulbenkian enche teatros em Londres e em Paris, hipermercados abrem por todo o lado, auto-estradas são construídas e erguem-se templos ao consumo, como por exemplo o Shopping Amoreiras, e passar férias ao sol deixa de ser um sonho só ao alcance de uns poucos. Os corpos dos portugueses mostram-se agora de um modo muito diferente do que antes se mostravam.


“Vamos correr riscos, vamos cometer erros”, foi com este mote que foi criado um novo espaço na Gulbenkian, o Centro de Arte Moderna. Esse local não foi concebido como sendo apenas para expor arte, mas também como um local para apresentar novas danças.
Foram então criados os Encontros Acarte, que trouxeram a Portugal os mais importantes e inovadores coreógrafos mundiais, gente que ficou para a história da dança, do teatro, dos gestos e do movimento, como Anne Teresa De Keersmaeker ou Pina Bausch.

“Os Encontros Acarte foram muito avassaladores. Nós tivemos acesso a um tipo de discurso que o Ballet Gulbenkian não fazia… os corpos deixaram de ser corpos perfeitos ou idílicos, passaram a ser corpos quotidianos ou mundanos…”

Pina Bausch cria obras-primas imensas e vem frequentemente a Lisboa. Numa dessas ocasiões, diz numa entrevista que “talvez a maior força seja um grande desejo”.


Chegados os Anos 90, houve quem começasse a pensar que a missão do Ballet Gulbenkian estava cumprida. A companhia tinha aberto caminhos, expandido horizontes e sido uma inspiração para uma série de novos bailarinos e coreógrafos.

De algum modo, o percurso do Ballet Gulbenkian foi paralelo ao do país. Se pensarmos nisso, quando a companhia começou, em 1965, os corpos dos portugueses estavam condicionados, quando não castrados, movimentavam-se de uma forma ritualizada, a mesma de sempre. Depois, revoltaram-se e libertaram-se, como que em clímax. De seguida abriram-se a outras influências, ao consumo e ao mundo. Passaram então a agir e a movimentar-se quase sem constrangimentos.

Se pensarmos nisso, durante a época do Estado Novo, por receio ou vergonha, os corpos dos portugueses não faziam um gesto, um movimento que fosse sem que esse fosse pensado. Isso não se faz, isso não é maneira de se estar, não se anda pela rua dessa forma e isto não é sítio para se correr. Não era invulgar que muitos dissessem "não sei dançar". O que na verdade queriam com isso dizer, era que jamais os seus movimentos seriam soltos e livres...

“Talvez ela pudesse dançar primeiro e pensar depois”, foi um espetáculo concebido pela coreógrafa Vera Mantero. O que o título nos diz é que nessa época já não se queriam corpos com receio de se movimentarem. Era dançar e logo se via, não era necessário pensar-se no que aconteceria. 


Aqui fica o segundo episódio de "Um corpo que dança":


Marco Martins, o realizador do filme, não se limitou a realizá-lo, construiu também um site que é quase uma enciclopédia dessa época, a que vai de 1965 a 2005.

Nele podemos encontrar a cronologia com todos os principais acontecimentos políticos, sociais e culturais, bem como as muitas canções e melodias que constituem a banda sonora da película, e ainda links com reportagens televisivas ou radiofónicas de tudo aquilo de que o filme fala, ou seja, de tudo que como povo fomos sendo, durante essas décadas. 

Comentários

  1. Gostei deste texto sobre o documentário do Marco Martins e de outros posts " que pesquisei de relance " no IF...Estou arredado da blogosfera , gostaria de ir seguir novas publicações , poder-me à dizer como fazer ? Obrigado

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Os professores vão fazer greve em 2023? Mas porquê? Pois se levam uma vida de bilionários e gozam à grande

  Aproxima-se a Fim de Ano e o subsequente Ano Novo. A esse propósito, lembrámo-nos que serão pouquíssimos, os que, como os professores, gozam do privilégio de festejarem mais do que uma vez num mesmo ano civil, o Fim de Ano e o subsequente Ano Novo. Com efeito, a larguíssima maioria da população, comemora o Fim de Ano exclusivamente a 31 de dezembro e o Ano Novo unicamente a 1 de janeiro. Contudo, a classe docente, goza também de um fim de ano algures no final do mês de julho, e de um Ano Novo para aí nos princípios de setembro.   Para os nossos leitores cuja agilidade mental eventualmente esteja toldada pelos tantos comes e bebes ingeridos na época natalícia, explicitamos que o fim do ano letivo é em julho e o início em setembro. É disso que aqui falamos, esclarecemos nós, para o caso dessa subtil alusão ter escapado a alguém.   Para além da classe docente, são poucos os que têm esta oportunidade, ou seja, a de ter múltiplas passagens de ano num só e mesmo ano...

Que bela vida a de professor

  Quem sendo professor já não ouviu a frase “Os professores estão sempre de férias”. É uma expressão recorrente e todos a dizem, seja o marido, o filho, a vizinha, o merceeiro ou a modista. Um professor inexperiente e em início de carreira, dar-se-á ao trabalho de explicar pacientemente aos seus interlocutores a diferença conceptual entre “férias” e “interrupção letiva”. Explicará que nas interrupções letivas há todo um outro trabalho, para além de dar aulas, que tem de ser feito: exames para vigiar e corrigir, elaborar relatórios, planear o ano seguinte, reuniões, avaliações e por aí afora. Se o professor for mais experiente, já sabe que toda e qualquer argumentação sobre este tema é inútil, pois que inevitavelmente o seu interlocutor tirará a seguinte conclusão : “Interrupção letiva?! Chamem-lhe o quiserem, são férias”. Não nos vamos agora dedicar a essa infrutífera polémica, o que queremos afirmar é o seguinte: os professores não necessitam de mais tempo desocupado, necessitam s...

Se a escola não mostrar imagens reais aos alunos, quem lhas mostrará?

  Que imagem é esta? O que nos diz? Num mundo em que incessantemente nos deparamos com milhares de imagens desnecessárias e irrelevantes, sejam as selfies da vizinha do segundo direito, sejam as da promoção do Black Friday de um espetacular berbequim, sejam as do Ronaldo a tirar uma pastilha elástica dos calções, o que podem ainda imagens como esta dizer-nos de relevante? Segundo a Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, no pré-escolar a idade média dos docentes é de 54 anos, no 1.º ciclo de 49 anos, no 2.º ciclo de 52 anos e no 3.º ciclo e secundário situa-se nos 51 anos. Feitas as contas, é quase tudo gente da mesma criação, vinda ao mundo ali entre os finais da década de 60 e os princípios da de 70. Por assim ser, é tudo gente que viveu a juventude entre os anos 80 e os 90 e assistiu a uma revolução no mundo da música. Foi precisamente nessa época que surgiu a MTV, acrónimo de Music Television. Com o aparecimento da MTV, a música deixou de ser apenas ouvida e pa...

Avaliação de Desempenho Docente: serão os professores uns eternos adolescentes?

  Há já algum tempo que os professores são uma das classes profissionais que mais recorre aos serviços de psicólogos e psiquiatras. Parece que agora, os adolescentes lhes fazem companhia. Aparentemente, uns por umas razões, outros por outras completamente diferentes, tanto os professores como os adolescentes, são atualmente dos melhores e mais assíduos clientes de psicólogos e psiquiatras.   Se quiserem saber o que pensam os técnicos e especialistas sobre o que se passa com os adolescentes, abaixo deixamos-vos dois links, um do jornal Público e outro do Expresso. Ambos nos parecem ser um bom ponto de partida para aprofundar o conhecimento sobre esse tema.   Quem porventura quiser antes saber o que pensamos nós, que não somos técnicos nem especialistas, nem nada que vagamente se assemelhe, pode ignorar os links e continuar a ler-nos. Não irão certamente aprender nada que se aproveite, mas pronto, a escolha é vossa. https://www.publico.pt/2022/09/29/p3/noticia/est...

A propósito de “rankings”, lembram-se dos ABBA? Estavam sempre no Top One.

Os ABBA eram suecos e hoje vamos falar-vos da Suécia. Apetecia-nos tanto falar de “rankings” e de como e para quê a comunicação social os inventou há uma boa dúzia de anos. Apetecia-nos tanto comentar comentadores cujos títulos dos seus comentários são “Ranking das escolas reflete o fracasso total no ensino público”. Apetecia-nos tanto, mas mesmo tanto, dizer o quão tendenciosos são e a quem servem tais comentários e o tão equivocados que estão quem os faz. Apetecia-nos tanto, tanto, mas no entanto, não. Os “rankings” são um jogo a que não queremos jogar. É um jogo cujo resultado já está decidido à partida, muito antes sequer da primeira jogada. Os dados estão viciados e sabemos bem o quanto não vale a pena dizer nada sobre esse assunto, uma vez que desde há muito, que está tudo dito: “Les jeux sont faits”.   Na época em que a Inglaterra era repetidamente derrotada pela Alemanha, numa entrevista, pediram ao antigo jogador inglês Gary Lineker que desse uma definição de futebol...

Aos professores, exige-se o impossível: que tomem conta do elevador

Independentemente de todas as outras razões, estamos em crer que muito do mal-estar que presentemente assola a classe docente tem origem numa falácia. Uma falácia é como se designa um conjunto de argumentos e raciocínios que parecem válidos, mas que não o são.   De há uns anos para cá, instalou-se neste país uma falácia que tarda em desfazer-se. Esse nefasto equivoco nasceu quando alguém falaciosamente quis que se confundisse a escola pública com um elevador, mais concretamente, com um “elevador social”.   Aos professores da escola pública exige-se-lhes que sejam ascensoristas, quando não é essa a sua vocação, nem a sua missão. Eventualmente, os docentes podem até conseguir que alguns alunos levantem voo e se elevem até às altas esferas do conhecimento, mas fazê-los voar é uma coisa, fazê-los subir de elevador é outra.   É muito natural, que sinta um grande mal-estar, quem foi chamado a ensinar a voar e constate agora que se lhe pede outra coisa, ou seja, que faça...

Luzes, câmara, ação!

  Aqui vos deixamos algumas atividades desenvolvidas com alunos de 2° ano no sentido de promover uma educação cinematográfica. Queremos que aprendam a ver imagens e não tão-somente as consumam. https://padlet.com/asofiacvieira/q8unvcd74lsmbaag

Pode um saco de plástico ser belo?

  PVC (material plástico com utilizações muito diversificadas) é uma sigla bem gira, mas pouco usada em educação. A classe docente e o Ministério da Educação adoram siglas. Ele há os os QZP (Quadros de Zona Pedagógica), ele há os NEE (Necessidades Educativas Especiais), ele há o PAA (Plano Anual de Atividades), ele há as AEC (Atividades de Enriquecimento Curricular), ele há o PASEO (Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória), ele há a ADD (Avaliação do Desempenho Docente), ele há os colegas que se despedem com Bjs e Abc, ele há tantas e tantas siglas que podíamos estar o dia inteiro nisto.   Por norma, a linguagem ministerial é burocrática e esteticamente pouco interessante, as siglas são apenas um exemplo entre muitos outros possíveis. Foi por isso com surpresa e espanto, que num deste dias nos deparámos com um documento da DGE (Direção Geral de Educação) relativo ao PASEO, no qual se diz que os alunos devem “aprender a apreciar o que é belo” .  Assim, sem ...

Dar a matéria é fácil, o difícil é não a dar

  “We choose to go to the moon in this decade and do the other things, not because they are easy, but because they are hard."   Completaram-se, no passado dia 12 de setembro, seis décadas desde que o Presidente John F. Kennedy proferiu estas históricas palavras perante uma multidão em Houston.  À época, para o homem comum, ir à Lua parecia uma coisa fantasiosa e destinada a fracassar. Com tantas coisas úteis e prementes que havia para se fazer na Terra, a que propósito se iria gastar tempo e recursos para se ir à Lua? Ainda para mais, sem sequer se ter qualquer certeza que efetivamente se conseguiria lá chegar. Todavia, em 1969, a Apolo 11 aterrou na superfície lunar e toda a humanidade aclamou entusiasticamente esse enorme feito. O que antes parecia uma excentricidade, ou seja, ir à Lua, é o que hoje nos permite comunicar quase instantaneamente com alguém que está do outro lado do mundo. Como seriam as comunicações neste nosso século XXI, se há décadas atrás ninguém tive...

És docente? Queres excelente? Não há quota? Não leves a mal, é o estilo minimal.

  Todos sabemos que nem toda a gente é um excelente docente, mas também todos sabemos, que há quem o seja e não tenha quota para  como tal  ser avaliado. Da chamada Avaliação de Desempenho Docente resultam frequentemente coisas abstrusas e isso acontece independentemente da boa vontade e seriedade de todos os envolvidos no processo.  O processo é a palavra exata para descrever todo esse procedimento. Quem quiser ter uma noção aproximada de toda a situação deverá dedicar-se a ler Franz Kafka, e mais concretamente, uma das suas melhores e mais célebres obras: " Der Prozeß" (O Processo) Para quem for preguiçoso e não quiser ler, aqui fica o resumo animado da Ted Ed (Lessons Worth Sharing):   Tanto quanto sabemos, num agrupamento de escolas há quota apenas para dois a cinco docentes terem a menção de excelente, isto dependendo da dimensão do dito agrupamento. Aparentemente, quem concebeu e desenhou todo este sistema de avaliação optou por seguir uma de...