“Tudo quanto sei com maior certeza sobre a moral e as obrigações dos homens devo-o ao futebol”, o dito é de Albert Camus, o mais importante escritor francês existencialista, o vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1957.
Escrevíamos anteontem, a propósito de como a poesia e o futebol são metáforas da vida, e para tal, falámos então de poetas como Umberto Saba, Roque Dalton e Carlos Drummond de Andrade. Hoje, ao invés de nos centrarmos na poesia, vamos antes falar-vos de jogos futebol, que ganharam um estatuto moral fundamental.
Mas antes disso, aqui fica o texto de anteontem:
Há uns quantos jogos de futebol que ficaram para a história, e isto pelas lições morais que nos deixaram. O certo é que, tenha sido por vitórias gloriosas, ou por derrotas catastróficas, há cidades, nações e gerações inteiras, cujo espírito e a moral, ficaram para sempre marcados pelo resultado final de um desafio futebolístico. Hoje vamos falar-vos de três desses momentos.
O mais dramático de todos esses jogos, terá certamente sido, aquele que se passou em 1950 no Rio de Janeiro. O que aconteceu naquele tarde no Maracanã, é o equivalente a uma noiva, que à última da hora, é abandonada no altar. Ou seja, esse dia no Rio de Janeiro, foi uma daquelas ocasiões em que todos se preparam para festejar, mas em que acabam esses mesmos todos a chorar e a lamentar-se.
Em 1950, o Brasil via-se a si mesmo como o país do futuro. A Europa estava devastada pela guerra e, nesse mesmo entretanto, do outro lado do Atlântico, erguia-se uma nova e moderna cidade, uma orgulhosa capital com uma arquitectura única, saída toda ela da imaginação e do traço de Oscar Niemeyer.
Em síntese, é a Brasília que nos referimos.
É nesse mesmo contexto, que decorre o Mundial de Futebol de 1950, cuja organização foi atribuída ao Brasil. É também nessa atmosfera de extremo optimismo, que é erguido no Rio, o maior e mais moderno estádio de futebol do mundo, o Maracanã.
Feitas as contas, estamos na final do Mundial, com duzentos mil espectadores no estádio, e o último embate é Brasil versus Uruguai. Ninguém esperava outra coisa, que não fosse uma vitória retumbante do Brasil, nesse domingo, dia 16 de julho de 1950.
A onze minutos do fim da partida, ouviram-se alguns gritos, logo seguidos de um silêncio ensurdecedor, o Uruguai tinha marcado o golo, com o qual o resultado ficava sentenciado.
Numa entrevista, Ghiggia, o autor desse derradeiro golo uruguaio, disse assim: "O silêncio era tão grande, que se uma mosca estivesse voando por lá, ouviríamos o som do seu zumbido.”
Quando se deu o apito final, a tragédia atingiu o seu epílogo no palco dos palcos. Houve protestos por todo o país, diversos suicídios e uma nação inteira ficou de luto. Anos depois, ao recordar esse momento, o capitão da selecção do Uruguai, descreveu o ambiente no dia do “Maracanaço”, nome pelo qual ficou conhecido esse jogo: “Era um silêncio enorme. Parecia que não havia ninguém. Quando terminou a partida, estávamos contentes, abraçámo-nos e, se olhávamos para a arquibancada, víamos as pessoas a chorar. Dava tristeza. Se soubesse o que era um povo inteiro a chorar, não sei se teria querido ganhar aquele jogo”.
Esse silêncio insondável ficou igualmente marcado na mente do escritor carioca Carlos Heytor Cony, que assistiu a tudo nas bancadas do Maracanã: “Dizem que o silêncio não tem voz. Que silêncio é silêncio… Foi talvez o barulho pior que ouvi na minha vida. Foi um silêncio que vem de dentro, apocalíptico, de amargedão. Parecia que o mundo todo tinha parado. Foi a primeira vez que como adulto eu chorei. Chorei com a impressão de que não tinha mais nada para fazer na vida. Que os meus dias na terra não contavam mais. Isso foi um sentimento geral e custou muito a digerir.”
Foram muitos os que passaram o resto da vida a procurar explicações para o que aconteceu naquela tarde inexplicável. Aquela derrota (a mãe de todas as derrotas, como também lhe chamaram) foi escalpelizada ao milímetro, e entre todos esses analistas, conta-se também o maior cronista de sempre em Língua Portuguesa, Nelson Rodrigues: “Cada povo tem a sua irremediável catástrofe nacional, algo assim como uma Hiroshima. A nossa catástrofe, a nossa Hiroshima, foi a derrota frente ao Uruguai, em 1950”.
O “Maracanaço” foi uma derrota eterna e assim o continuará a ser até ao final dos tempos. Aconteça o que acontecer, nunca mais o Brasil ganhará o Mundial de Futebol de 1950.
Abaixo, o momento em que a bola cruzou a linha de golo. A hora da tragédia veio às 16h33 do dia de domingo, de 16 de julho de 1950. A derrota foi interpretada como uma metáfora de uma nação eternamente adiada. Um país que se queria e se cria de futuro, viu-se subitamente condenado à vil tristeza dos que já nada têm a esperar do vida.
Passemos agora a uma outra partida, que marcou a história, e que aconteceu em Berna, em 1954, durante a final do Mundial de Futebol organizado nesse ano pela Suíça.
Tinha então chegado o dia da final, e em campo, frente a frente, estavam as seleções nacionais da República Federal da Alemanha e da Hungria.
Ninguém tinha dúvidas sobre quem seria o vencedor. A Hungria era uma equipa com alguns dos mais maravilhosos jogadores de sempre, sendo liderada por Puskas, um homem que fazia magia com uma bola nos pés. Mais a mais, no jogo da primeira fase desse mundial na Suíça, ocorrido apenas uns dias antes da final, a Hungria tinha batido essa mesma exacta seleção da Alemanha por um estrondoso 8 a 3.
Para além de tudo isso, a Alemanha, o país em si, estava completamente devastada devido à guerra, que tinha terminado uns poucos anos antes. Era um país derrotado e desmoralizado, pois não só tinha perdido o conflito, como muitos dos seus cidadãos tinham estado envolvidos nas atrocidades nazis. Em síntese, ser-se alemão nesses tempos, era algo pouco menos que vergonhoso.
E como se tudo isso já não bastasse, a Alemanha tinha invadido a Hungria na Segunda Grande Guerra. Consequentemente, e até por razões patrióticas, e mesmo que se tratasse somente de um jogo de futebol, havia motivos mais do que suficientes para os húngaros se quererem vingar e desejarem obter um claro triunfo sobre os germânicos.
Quando a final se iniciou, a Hungria, como era previsível, chegou rapidamente ao 2-0. No entanto, a Alemanha acabou por empatar e, a cinco minutos breves do fim da partida, marca o 3-2. Contra todas expectativas, a Alemanha venceu. O jogo ficou para a história como o “Milagre de Berna”.
Só que o “Milagre de Berna” não foi um acontecimento apenas desportivo, pois nesse dia foi como se um povo inteiro, o alemão, pela primeira vez, após o término da guerra, sentisse que voltava a pertencer à raça humana.
Ou seja, a Alemanha viu que não era uma nação tão só constituída por nazis e por cruéis assassinos, mas também por bravos heróis. As gentes alemãs, viram nesse dia, que poderiam esperar por uma redenção, o mesmo é dizer, que poderiam voltar a sentir-se como humanos de pleno direito.
Quando a seleção alemã regressou a casa, o comboio que transportava os jogadores mal conseguia avançar, tal era a multidão posicionada ao longo da linha férrea. A equipa era engolida por adeptos em festa por onde quer que andasse.
"De repente, a Alemanha era alguém outra vez", como disse Franz Beckenbauer, então apenas um jovem. O significado do resultado dessa final, foi muito para além de uns simples pontapés na bola. Beckenbauer acrescentou ainda que "recuperámos nesse dia a nossa auto-estima."
Incentivado por esse triunfo futebolístico, o povo alemão acreditou que se poderia reerguer e voltar a ser gente, só que desta vez não com tanques, armas e exércitos, mas sim com trabalho, dedicação e sacrifício. Vai daí ergueram-se fábricas, desenvolveu-se o comércio, as cidades foram reconstruídas e, nuns poucos anos, a Alemanha transformou-se no motor económico de toda a Europa.
São muitos os historiadores e economistas que atribuem esse renascimento alemão ao impulso dado pelo “Milagre de Berna”. Tal e qual como após o final da guerra parecia impossível que a nação alemã se voltasse a reerguer, parecia de igual modo impossível, que a seleção de futebol da Alemanha conseguisse vencer a poderosa e maravilhosa seleção da Hungria, todavia, e contra todas as probabilidades e prognósticos, foi isso mesmo que sucedeu.
Esse jogo de 1954 entre a Alemanha e a Hungria foi tema de romances, de poesias e de músicas. Foi também assunto para variadíssimos filmes, aqui fica o trailer de um deles:
O terceiro e último desafio de que vos vamos falar, ocorreu em Lisboa em 1967. Jogava-se a final da Taça dos Campeões Europeus e as equipas que nessa ocasião se defrontaram eram os italianos do Inter de Milão e os escoceses do Celtic de Glasgow.
Milão era por essa época uma vibrante capital da moda e do design, para além disso, era a mais rica, cosmopolita e sofisticada das cidades italianas. É certo que Milão não tinha o encanto monumental de Roma, Veneza ou Florença, mas de resto, tinha tudo do bom e do melhor.
As equipas de futebol da cidade da Lombardia eram ricas e poderosas, quer o Milan AC, quer o Inter. Dinheiro não lhes faltava e, por isso, ambas conseguiam contratar os melhores jogadores do mundo para as suas fileiras.
Glasgow, por outro lado, era uma cidade deprimida, tinha tido o seu apogeu durante a época industrial, mas nessa altura vivia numa constante crise económica. Todos os seus habitantes estavam conscientes, que os melhores dias de Glasgow, há muito que eram idos. Abaixo uma foto da cidade escocesa, durante a década de sessenta do século XX.
Glasgow desde sempre esteve dividida entre católicos, que são fundamentalmente descendentes de irlandeses, e protestantes, cuja origem é sobretudo inglesa. Por consequência disso, há dois grandes clubes de futebol nessa cidade, o Glasgow Rangers, apoiado pelos protestantes, e o Celtic suportado pelos católicos. O jogo entre ambos, é o mais velho dérbi do mundo, pois vem desde meados do século XIX, sendo conhecido pelo nome de “Old Firm”.
Se porventura alguém quiser perceber o que é a Escócia e a histórica rivalidade existente entre católicos e protestantes, e entre aqueles que apoiam a coroa britânica e os que se sentem mais próximos do separatismo irlandês, é ver esta reportagem de treze minutos sobre o dérbi de Glasgow, está lá tudo:
Regressemos a Lisboa e a 1967, quando o Celtic e o Inter se defrontaram. De um lado estavam os jogadores da equipa italiana, autênticas vedetas internacionais, quase estrelas de Hollywood. Do lado oposto estavam os jogadores do Celtic, jovens todos eles nados e criados nos bairros pobres de Glasgow.
Os jogadores do Inter estavam impecáveis, com cortes de cabelo de última moda e apresentando-se com o porte altivo próprio dos grandes senhores. Os jogadores do Celtic era rapaziada crescida na rua, que nem sabia muito bem como tinham conseguido atingir a grande final. Na verdade, eles próprios estavam surpreendidos por ali terem chegado. Os seus cabelos eram desgrenhados e muitos deles tinham falta de dentes e cicatrizes no rosto, tudo isso devido às rixas em que se tinham envolvido enquanto miúdos, com a malta lá do bairro.
Ao saírem do túnel de acesso ao relvado, no dia da final, os jogadores do Celtic estavam fascinados com o que viam, era como se estivessem a ver um filme. "Lá estavam eles", lembrou Jimmy Jinky Johnstone, o líder dos escoceses, a propósito dos italianos, "todos com mais de 1,80 m de altura, bronzeados com cor de Ambre Solaire, sorrisos Colgate e cabelos lisos presos para trás. Eles até bem cheiravam!”
"E lá estávamos nós, os anões! Eu não tinha vários dentes, Bobby Lennox também não, e o velho Ronnie Simpson não tinha sequer um único para amostra, nem os de cima, nem os de baixo. Os italianos encaravam-nos com desdém, e nós sorrimos-lhes com as nossas grandes gengivas. Devíamos parecer-lhes um grupo saído de um qualquer circo!”
Como já se adivinha, mas à época ninguém adivinhou, o Celtic venceu. Uma equipa de semi-amadores triunfou sobre uma outra de grandes senhores, pagos a peso de ouro. Foi um dos mais surpreendentes resultados da história, e os jogadores do Celtic ficaram para sempre conhecidos como “The Lisbon Lions”.
E pronto, com estas três importantes lições morais, findamos as nossas conversas sobre futebol.
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