De quando em vez, a RTP lá faz aquilo
para que existe, ou seja, informar-nos de um modo sério e rigoroso, sem
constantes notícias bombásticas e polémicas estéreis e, educar-nos.
Com efeito, a RTP esquece-se com
frequência, que a sua missão também tem uma vertente educativa, sendo precisamente
por isso, que é uma estação de serviço público, e não um mero e qualquer canal
comercial.
Vem isto a propósito da RTP estar a
exibir uma série documental intitulada “10
Mil Km, de Regresso ao Japão”. No texto de introdução à série, diz-se o
seguinte: “O que podem ter em comum dois
países tão distantes quanto o Japão e Portugal? Na verdade, há um intercâmbio
de 500 anos para descobrir, que se revela na gastronomia, nos objectos, na moda
ou na linguagem. Em 15 episódios, percorremos esta ponte singular de uma
amizade de séculos, que tão poucos conhecem.”
Os dois primeiros episódios da série “10 Mil Km, de Regresso ao Japão” estão
disponíveis na RTP Play:
https://www.rtp.pt/play/p15831/10-mil-km-de-regresso-ao-japao
Os portugueses foram os primeiros
europeus a chegar por mar à Ásia Oriental e, no caso do Japão, foram mesmo os
primeiros europeus com quem esse país teve contacto.
Como se pode ver no primeiro episódio
da série “10 Mil Km, de Regresso ao
Japão”, os japoneses conhecem
muito bem a história e a cultura portuguesa, e, mais do que isso, orgulham-se
da relação que têm com Portugal, no entanto, não é possível afirmar o oposto, pois
nós, os portugueses, conhecemos mal a história e a cultura do Japão.
Abaixo uma imagem de um biombo Nabam,
no qual se representa a chegada dos portugueses ao Japão.
Nós, os deste blog, não somos a RTP,
mas ainda assim, gostamos de falar de cultura, de história e de outros povos. Por
consequência disso, vamos dedicar nos próximos tempos, uns quantos textos, ao
país do sol nascente, sendo este, o presente, o primeiro.
Para começarmos a falar do Japão,
nada melhor do que falarmos do seu cinema e, mais concretamente, de três dos
maiores cineastas de sempre, todos originários do país nipónico.
Os seus nomes são Yasujirô Ozu (1903-1963),
Kenzi Mizoguchi (1898-1956) e Akira Kurosawa (1910-1998).
Neste presente texto falaremos do
primeiro, nos próximos dos restantes dois.
Comecemos então por Ozu e por três
filmes que, no fundo, resumem a sua obra. O cinema de Ozu é uma arte que nos convida
à contemplação, à observação atenta dos gestos, dos objectos, da natureza e de
tudo o mais que existe.
As suas narrativas são tranquilas,
pois os personagens não se envolvem em grandes dramas ou aventuras, mas vivem
tão-somente conflitos quotidianos, que mesmo sendo perturbantes, se dão
essencialmente no interior das suas almas.
A imagem acima é do filme “Viagem a Tóquio”. Como em muitas outras
obras de Ozu, o que vemos são duas gerações diferentes a olhar em frente, para
o futuro, no entanto, o que avistam são porvires muito distintos.
A geração mais velha avista um futuro
em que o passado continue presente, e por isso dá extrema importância às
tradições e aos ancestrais hábitos e costumes nipónicos. A geração mais nova,
pelo contrário, vê o vindoiro como qualquer coisa de moderno, ocidentalizado e
inédito, muito dissemelhante do tempo anterior.
É dessas duas visões opostas que
nascem os conflitos nos filmes de Ozu. Não existem em Ozu conflitos abertos ou
confrontos agressivos, o que existe sim são personagens que dentro de si lutam
por harmonizar essas duas diferentes visões do futuro.
Abaixo uma imagem do filme de Ozu “Verão
Prematuro”. As várias gerações posam para uma foto de família. O que se
esconde nessa pose são os diversos conflitos interiores que todos vivem, e que
resultam das distintas visões que possuem do futuro.
Em “Verão Prematuro”, Noriko, a
personagem principal (ao centro na foto acima) é uma secretária que trabalha na
moderna e agitada cidade de Tóquio, no entanto, mora na tradicional e tranquila
Kamakura, onde vive com a sua extensa família.
Toda a família pensa que com 28 anos,
Noriko já se deveria ter casado, razão pela qual, todos se afadigam para lhe
encontrar um marido, porém, a ela, a ideia de matrimónio não lhe agrada.
Noriko vive interiormente dividida,
pois apesar de aspirar viver uma vida autónoma, sente que se o fizer e não se
casar, todos ficarão desiludidos. No fim, acaba por decidir casar com o vizinho
do lado, um homem que conhece desde sempre, e com quem tem uma longa relação de
amizade.
O vizinho e amigo enviuvou
recentemente, e por assim ser, o casamento convém a ambos, muito embora nenhum
deles esteja particularmente feliz. Nem estão eles felizes, nem o está a
família de Noriko, que preferia que a escolha dela tivesse sido outra.
Em síntese tradição e modernidade
acabam por se articular, mas isso não significa que toda a gente tenha ficado
feliz e em harmonia, na verdade, todos se resignaram. Aqui fica o trailer de
“Verão Prematuro”.
O mais célebre filme de Ozu é “Viagem
a Tóquio”. Nessa obra conta-se a história de um velho casal, que resolve ir
a Tóquio, à grande cidade, visitar os filhos.
Essa viagem serve de pretexto a Ozu,
para ilustrar os seus temas de sempre, a saber, o confronto entre o velho e o
novo, as relações familiares, o envelhecimento, a decepção e a resignação.
Todo o cinema de Ozu é uma reflexão
sobre a fronteira entre esses dois mundos opostos, de um lado, o Japão
tradicional, do outro, o Japão moderno, ou seja, esse que surgiu reconstruído a
partir das cinzas resultantes da II Guerra Mundial.
Nos seus filmes, Ozu mostra-nos imagens
de um Japão progressivamente industrializado e ocidentalizado. Por isso mesmo,
em certas cenas das suas películas, o que vemos são apenas chaminés de fábricas,
postes de alta tensão, arranha-céus, imensas linhas de caminho-de-ferro e luzes
de néon, como no fotograma abaixo.
“Viagem a Tóquio” é um filme envolto em melancolia. As
diferentes personagens sabem estar perante coisas inevitáveis, como seja a de
que pais e filhos se hão-de separar, e a de que as novas gerações colocam
sempre em questão aquilo em que as anteriores acreditam.
O génio de Ozu está em que nos
consegue mostrar esse afastamento entre o velho e o novo com enorme delicadeza,
e sem dar a ver qualquer confronto, mas sim e apenas a leve tristeza inerente
ao facto de a vida andar sempre em frente, e de que o tempo avança,
independentemente de tudo o que tentemos fazer para o deter.
"Viagem a Tóquio" acompanha um casal de idosos na
visita aos seus filhos na capital, que, absortos nas suas vidas quotidianas, os
tratam com uma indiferença casual, que ainda que de forma involuntária, por
vezes chega a roçar a crueldade.
O filme é doloroso por ser uma
representação honesta de uma família fragmentada pelas restrições, afazeres e
preocupações da vida moderna.
O velho casal faz passeios por Tóquio,
vendo a cidade a partir de um autocarro turístico e com a clara consciência de
que os arranha-céus reconstruídos que contemplam eram, ainda há bem pouco tempo,
não mais do que os escombros resultantes da guerra.
O velho casal vê a moderna Tóquio
como uma evidência de que o tempo em que nasceram, cresceram e viveram,
pertence irremediavelmente ao passado.
Por fim, os filhos oferecem ao velho
casal umas férias numa estância balnear. Fica a sensação de que a oferta não
foi ditada exclusivamente pela generosidade, mas que essa foi também uma
maneira de se livrarem dos seus pais, pretendendo que eles vissem as férias
oferecidas, como uma grande bondade. Aqui fica o trailer de “Viagem a Tóquio”.
“Bom dia” é um outro filme emblemático de
Yasujirô Ozu, neste caso o conflito de gerações dá-se entre o pai e os seus
filhos ainda crianças. Mais uma vez é o novo e o velho Japão que se enfrentam.
Em “Bom dia” fazemos uma
visita aos subúrbios de Tóquio. Mergulhamos no novo Japão reerguido das ruínas
do pós-guerra, um local economicamente próspero, onde as influências culturais
ocidentais estão presentes por todo o lado na vida quotidiana.
O enredo gira em redor das típicas
aventuras e desventuras da classe média suburbana, que vive em pequenos bairros,
onde as casas estão rodeadas por cercas brancas e preenchidas por utensílios
coloridos, ao bom estilo norte-americano.
Em “Bom dia” as donas de casa pululam entre as casas circundantes,
trocando comida, bebida, e não raras vezes mexericos. Os miúdos entram e saem
das casas dos vizinhos para verem os campeonatos de Sumo na televisão.
A televisão está, na verdade, no
centro da história. O Senhor Hayashi, o pai, decide não adquirir o recente aparelho,
por segundo ele, “a televisão ir fabricar
100 milhões de idiotas”.
Desesperados por possuírem uma TV, os
filhos de Hayashi praticam em primeiro lugar uma resistência passiva a essa
decisão do pai, contudo, posteriormente, o conflito geracional resvala para a
troca de berros e de gritos até que, finalmente, os miúdos decidem iniciar um
protesto silencioso e recusam-se a falar.
Se quisermos analisar as intenções de
Ozu, poderemos dizer que, se por um lado, ele repudia os comportamentos
sufocantes e moralistas das gerações mais velhas, por outro, também se preocupa
com a imprudência sem restrições dos mais jovens, que são claramente mais influenciados
pelos meios de comunicação de massas e pela superficial cultura ocidental, do
que pela família e pela tradição.
No fundo, todas as personagens de Ozu
estão dessincronizadas com quem as rodeia, mesmo de quem lhes é mais próximo.
Mas dito isto, ele não tem uma solução
para as organizar, nem nos dá nenhuma resposta à pergunta sobre aquilo em que o
Japão dessa época se transformará. A sua resignada sabedoria, reside em saber
que não existe outra escolha, senão acreditar no poder do tempo, esse que tudo
resolverá.
Abaixo a uma imagem de um fim de dia
em família, na casa do Senhor Hayashi, após este ter adquirido um novíssimo aparelho
televisão.
A forte crítica de Ozu é dirigida ao
marasmo da cultura japonesa de então, e isto apesar de os seus filmes serem
construídos em volta dos diálogos banais e comuns da vida quotidiana, em que os
conflitos são mais interiores do que explícitos.
No caso de “Bom dia”, ele
critica a tendência dos adultos dessa época para conversas sem sentido, ou
seja, para fazerem conversa fiada.
É o vazio da tagarelice dos adultos,
que faz crescer nos mais novos um intenso desejo de ter televisão. Eles, os
miúdos, que eram então o futuro do Japão, não queriam crescer num mundo de
antigos rituais sem significado.
Abaixo uma cena de “Bom dia”.
E por aqui terminamos este primeiro
texto dedicado aos três maiores cineastas do Japão, hoje foi Ozu, em breve
serão Mizoguchi e Kurosawa.










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