DIVAGAÇÃO - A natureza é bela, embora por vezes seja cruel, mas ainda assim, não há quem não goste dela. Razão pela qual, as alterações climáticas e a poluição de terras e mares a todos perturbam e preocupam.
Dito isto, há uns poucos que se põem a matutar mais longamente e decidem que está na hora de atuar, ou seja, de deitar mãos à obra e resolver o assunto. Vai daí, respiram fundo, enchem-se de valentia e coragem, dirigem-se ao museu mais próximo e borram uma pintura.
Tais arrojadas atitudes, já tinham acontecido noutras paragens, todavia, na semana passada, eis que sucedeu exatamente o mesmo no nosso amado Portugal. Ativistas ambientais entraram pelo Centro Cultural de Belém adentro e borraram um quadro de Pablo Picasso, “Femme dans un fauteuil”, uma obra de 1929.
Aqui fica a notícia, para quem quiser saber o que se passou nesse dia:
Há algo que nos intriga profundamente nestas ações de protesto: como selecionarão os ativistas a obra a atacar? Em Amsterdão foi um Rembrandt, em Londres um Constable, em Roma um Van Gogh, em Estocolmo um Monet e em Madrid dois Goyas.
Não vemos nestas escolhas um qualquer padrão baseado na História da Arte, pois que as obras são de escolas pictóricas completamente diferentes e de épocas muito díspares.
O único padrão que se pressente, é o de que os ativistas provavelmente escolhem o nome do artista que julgam ser o mais sonante em cada um dos museus, e de seguida zás, lá vai disto.
Não há outra explicação possível para em Portugal terem escolhido uma pintura de Pablo Picasso de 1929. Não é sequer uma obra muito conhecida e nem é das mais particularmente inspiradas do artista espanhol.
Possivelmente, os ativistas nacionais hão de ter ido verificar as obras expostas no CCB e não encontraram mais nenhuma cujo nome do autor lhes enchesse as medidas e correspondesse às altas expetativas que tinham para a sua ação de protesto. E pronto, assim sendo, lá se decidiram pelo Picasso, que ao menos é um nome que toda a gente sabe.
Enfim, é toda uma situação de se deitar as mãos aos céus.
Tal como os ativistas ambientais, também nós misturámos arte com fenómenos naturais. Sabíamos que não íamos mudar o mundo de uma só vez, não tínhamos ambições tão megalómanas, por isso, ao invés de irmos borrar uma pintura num museu, fomos mais modestos e limitámo-nos a fazer um guião de aprendizagem ao qual demos o título "Bela e Cruel".
Conversámos com os alunos sobre as distintas faces da natureza, que tanto pode fazer brotar da terra uma linda e delicada flor, como um brutal e devastador tremor. Também conversámos sobre o Museu Calouste Gulbenkian.
Hoje é o dia para uma DIVAGAÇÃO sobre o tema desse guião. Acerca da INSPIRAÇÃO e da INTENÇÃO que lhe estiveram subjacentes, já nós refletimos em anterior ocasião:
INTENÇÃO - "BANZAI! Fomos às Aprendizagens Essenciais"
Vamos por ora esquecer a face cruel da natureza e concentrarmo-nos exclusivamente no seu lado belo. Pensemos no que de mais sublime existe no mundo natural. Para tal exercício mental, não é necessário sermos megalómanos e pensarmos nas imensas montanhas dos Himalaias, onde lá do alto se avistam grandiosas paisagens sem fim.
Também não é preciso imaginarmos estarmos rodeados de uma densa e luxuriante vegetação, no lugar mais recôndito e intocado da floresta amazónica. Nada disso, para este exercício, basta-nos algo banal. Na verdade, chega-nos um calhau.
Apenas com uma mera pedra, já é possível sentirmos a extrema beleza da natureza. Tanto assim o é, que muitos foram os sábios, artistas e poetas que o sentiram.
Vejamos alguns exemplos. Comecemos pelo grande fotógrafo Gérard Castello-Lopes (1925-2011). A sua pedra com o mar em fundo, é um dos raros ícones da fotografia portuguesa:
Mas pensemos também no exemplo do maior dos poetas do Brasil, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Aqui fica o mais célebre e influente dos seus poemas:
No meio do caminho tinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminhotinha uma pedrano meio do caminho tinha uma pedra.Nunca me esquecerei desse acontecimentona vida de minhas retinas tão fatigadas.Nunca me esquecerei que no meio do caminhotinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminhono meio do caminho tinha uma pedra.
E que tal pensarmos igualmente no templo de Ryōan-Ji em Kyoto, a antiga capital imperial do Japão. Originalmente construído no século XI, é um dos locais mais sagrados do budismo zen. É precisamente aí, que desde há muitos séculos, os monges se dedicam a contemplar em total silêncio humildes pedras em busca do caminho para a felicidade e sabedoria:
São apenas três exemplos, entre muitos outros possíveis. O que todos eles nos ensinam, é que não é necessário pensarmos em paisagens grandiosas e em locais naturais virgens e intocados pela mão humana, para conseguirmos pressentir a beleza da natureza. Uma coisa tão modesta como uma pedra, é mais do que o suficiente.
Tal como uma mera pedra, também uma singela folha caída, uma simples pétala de flor ou uma fugaz nuvem passageira, são já o bastante para que possamos deter o nosso olhar e ver o quão bela é a natureza. No fundo, é tudo uma questão de estarmos com atenção.
Aqui há uns anos, em Nova Iorque, no discreto e quase secreto, mas muito prestigiado Museu Noguchi, organizou-se uma exposição temporária intitulada “Museum of Stones”.
Dela constavam obras de arte desde a antiguidade até à atualidade nas quais as pedras eram o tema preponderante, ao qual foi dedicada toda a atenção.
Tanta atenção foi a dedicada a calhaus ásperos e rudes…
… como a polidas e sofisticadas pedras.
Mais atenção para com a natureza, é precisamente o que os ativistas ambientais dizem ser o seu objetivo. No entanto, em que medida uma ação tão sonante e grandiloquente como borrar quadros num museu, cumprirá tal função?
Vamos lá então analisar esta questão. Imaginemos que na passada semana, o conselho de administração de uma qualquer grande empresa poluente estava em reunião. A situação tanto se poderia passar aqui como na China ou seja lá onde for. Nisto chega uma notícia de última hora, no CCB borraram um quadro do Picasso. Sensibilizados por tal ação, subitamente todos os elementos do conselho administração deitam as mãos à cabeça, batem violentamente no peito e contritos arrependem-se amargamente dos seus nefastos atos contra o ambiente, jurando que daí para a frente jamais os voltarão a cometer. De futuro a empresa tornar-se-á um exemplo de responsabilidade e sustentabilidade.
Imaginemos ainda uma outra situação. Desta vez não de âmbito empresarial, mas sim familiar. O Manel chega a casa e diz para a mulher:
- Ó Maria, nem queiras saber o que sucedeu.
- Diz lá o que foi desta vez.
- Borraram um quadro do Picasso.
- Não me digas uma coisa dessas…
- Verdade, verdadinha, juro!
- Ai Manel que nem estou em mim, compreendo agora que somos uns desalmados. Vamos emendar-nos e passar a separar o lixo. Sacos de plásticos, a partir de hoje, nem vê-los. E tu vais já depressa lá abaixo pôr tudo no ecoponto no correspondente recipiente. Toca a andar.
Estamos cá desconfiados que é muito improvável, que qualquer uma destas duas situações alguma vez transite do território da imaginação para o da realidade. E é por assim ser, que não compreendemos lá muito bem a necessidade de se borrar quadros do Picasso.
Mais a mais, praticamente toda a gente minimamente inteligente, está perfeitamente consciente dos gravíssimos problemas que afetam o ambiente. Não percebemos o intuito de se chamar a atenção para aquilo a que quase todos já estão atentos.
Percebemos sim a necessidade de se fazer algo, e muito particularmente, a necessidade de se fazer algo tão quotidiano, trabalhoso e modesto como educar. O que neste caso passa por desenvolver a sensibilidade para as coisas belas, sejam elas as artísticas ou as naturais.
A quem polui, suja e estraga, o que fundamentalmente lhe falta é educação, nomeadamente, aquela que é necessária para se ter sensibilidade para apreciar as coisas belas. Belas como uma pintura ou uma escultura, como as margens de um rio de águas límpidas e claras, como uma nuvem que passa ou como uma simples pedra.
Não cremos que borrar pinturas contribua para educar e desenvolver sensibilidade de seja lá quem for…ou…se calhar….talvez sim…
Na imagem inicial que ilustra este texto, temos uma pintura do artista norte-americano Cy Twombly (1928-2011). Agora que reparamos nisso, verificamos que há semelhanças entre muitas das obras desse pintor e as várias borradas realizadas pelos ativistas ambientais. Diríamos que em ambos os casos, estamos perante aquilo que na História da Arte se designa como o Expressionismo Abstracto.
Vejamos uma outra obra desse estilo…
…e agora uma borrada dos ativistas.
Como todos puderam observar, ainda que a borrada dos ativistas não seja lá essas coisas, há óbvias semelhanças com o Expressionismo Abstracto. Razão pela qual, estamos em crer, que mesmo sem querer, os ativistas ambientais estão involuntariamente a contribuir para a divulgação de um estilo pictórico um tanto ou quanto incompreendido e para o consequente desenvolvimento da sensibilidade estética.
Em conclusão, talvez as suas ações de protesto nos museus não sejam completamente inúteis, pois mesmo nada fazendo pela sustentabilidade do planeta, ainda assim, divulgam um estilo artístico pouco compreendido alargando assim os horizontes de muitos.
Bem hajam por isso.
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