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Ir a Bruxelas e não ver o Pis


Quem ou que é o Pis, é a pergunta que fará quem não sabe. É uma pequena estátua que está colocada desde 1619 no centro de Bruxelas, com um menino a urinar para a bacia de uma fonte. É o mais conhecido símbolo dessa cidade.
Terminamos hoje um conjunto de três textos dedicados a sítios dineyficados pelo turismo de massas, começámos na sexta por Roma, ontem fomos a Paris e hoje, que é domingo, vamos a Bruxelas.
Nós não gostamos que as cidades estejam progressivamente a ser transformadas numa espécie de parques temáticos, e a esse propósito falámos de Roma e Paris percorrendo as suas verdadeiras histórias, ou seja, as imaginadas, através de filmes e canções.
Aqui ficam essas duas viagens para mais tarde recordar:
Vamos então a Bruxelas. Quem nos lê estranhará o porquê de Bruxelas. Não é de facto um destino evidente. Não tem o glamour de Roma ou Paris, nem sequer o mistério de Praga ou Budapeste, o exotismo de Istambul ou o encanto de Veneza.
Também não tem praia nem campo, consequentemente, porquê Bruxelas?
É certo que em Bruxelas não há enormes multidões de turistas, como as há noutros sítios, mas Bruxelas é para aqui chamada, porque é a sede da anti-disneyficação do mundo.
Em linhas gerais, disneyficar consiste na transformação comercial das coisas (por exemplo, do entretenimento) ou de ambientes em algo simplificado, controlado e seguro. A expressão descreve o processo de retirar a um lugar o seu caráter autêntico para lhe dar um formato higienizado.
Referências a algo negativo são removidas e tudo é simplificado de modo a ficar mais agradável e facilmente compreensível. No caso de lugares físicos, isso implica a substituição do real por uma aparência idealizada, adequada e amigável para o turista, semelhante à dos parques de atrações.
O nosso ponto é que a disneyficação é uma espécie de colonização da imaginação, e por arrasto dos lugares. Há quem queira ganhar muito dinheiro e por isso imaginou refazer as cidades como se fossem um mundo de sonho, seguro, tranquilo, compreensível, limpo e divertido, onde ainda para mais houvesse muitas lojas, restaurantes, pizzas, refrigerantes, fadas, castelos, bonecos animados, carrosséis, souvenirs, produtos típicos e regionais.
A disneyficação esconde e desloca todos os problemas ou tensões que sempre existem quando muita gente vive junta. Transforma a cidade numa pacífica experiência para consumo turístico, ocultando as diferenças, a precariedade e todo o tipo de conflitos.
A tensão e os conflitos não são consumáveis e por isso são deslocados para as periferias. A uma difícil viagem de distância num qualquer transporte público, fica um mundo e uma realidade completamente isolada, isto para que o estimado turista consumidor não corra o risco de entrar num bairro errado, o parque de diversões fica sempre no centro.
Mas dito isto, continua por dizer a razão pela qual Bruxelas é a sede da anti-disneyficação. A razão é simples, foi em Bruxelas e no país do qual é a capital que se criaram alguns dos maiores personagens de sempre da banda desenhada.
Os personagens da B.D. belga não são higienizados, nem idealizados, nem facilmente compreensíveis. O mais conhecido de todos eles é o Tintim. A complexidade das suas aventuras é tão grande, que o seu autor, Hergé, foi frequentemente acusado de propagar a violência, a crueldade para com os animais, pontos de vista colonialistas, racistas e também de ser misógino, dado que quase não aparecem mulheres.
Tudo isto foi rebatido, mas as argumentações e contra-argumentações sucedem-se, daí ser inegável que o Tintim é um exemplo perfeito de uma personagem anti-disneyficada, apesar da sua aparência, nada nele é inocente, puro e simples. As suas aventuras não são somente divertidas, há também sarcasmos, ironias, desdém e coisas pouco simpáticas. A nosso ver é muito mais interessante que o Rato Mickey.
E uma vez que estamos em Bruxelas, o melhor é visitarmos o Museu Hergé, o autor de todos os álbuns de Tintim.
Um dos mais conhecidos filhos de Bruxelas é François Schuiten. Não o conhecem? Não faz mal, nós dizemos quem ele é. Nasceu em 1956 e é o autor da série de banda desenhada “As Cidades obscuras”.
Todas as suas histórias se focam ou numa cidade ou num único edifício. Os desenhos são visões de arquiteturas impossíveis, que tanto poderiam pertencer a um futuro distante, como ao passado histórico.
Os edifícios que imagina são em tudo distinto dos delicodoces palácios e castelos da Cinderella, as cidades que inventa não são para turistas. Num dos seus livros reinventou Bruxelas, que é por onde hoje andamos.
Mas não nos queremos ir de Bruxelas sem um filme. A cada dez anos, a mais prestigiada revista internacional de cinema, a “Sight and Sound”, elege os 100 melhores filmes de sempre. Durante décadas, o primeiro lugar foi sempre o mesmo, contudo, em 2023, ano da última eleição, o filme que ficou em primeiro lugar foi o quase desconhecido “Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles”.
A eleição é feita a partir dos votos de centenas de críticos de cinema de todo o mundo e, por um qualquer alinhamento dos astros, em número um ficou o dito filme, uma obra quase totalmente ignorada pelo grande público.
É um filme de Chantal Akerman e consiste numa observação sistematizada, quase "maníaca", do dia a dia rotineiro de uma mulher de Bruxelas. A dureza formal do filme revela-se na sua obsessiva calendarização do tempo e das rotinas. São três horas e doze minutos de filme em que vemos continuamente um repetitivo quotidiano doméstico, onde nada de especial acontece.
Deixamos-vos o trailer de um minuto e meio e só por aí já se consegue perceber o resto do filme. Em síntese mais anti-disneyficado do que isto, não há.

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