Ontem e anteontem. Assim, sem mais. “Ontem e
anteontem”, é uma frase legítima, que vale por si, até tem um ponto final e
tudo. Ontem falámos-vos de maquilhagem para crianças, do Fernando Mamede, de
selfies e de “a pressão da imagem”, anteontem falámos-vos dos adversários dos
valores tradicionais, dos Anos 50 “Made in U.S.A.” e das suas famílias
perfeitas.
No fundo é tudo a mesma coisa, e é essa a razão pela
qual, hoje vos vamos falar dos The Beach Boys. Talvez não estejam a ver a
relação entre todos estes temas, mas não faz mal, não se inquietem, mais à
frente, se tudo correr bem, logo a verão.
Dizemos-vos desde já que não vai ser fácil. É por
estas e por outras, que este blog não está destinado a tornar-se popular, pois
por vezes enredamo-nos nas nossas próprias complexidades e pensamentos e as
palavras intricam-se-nos e as frases emaranham-se-nos. Queremos dizer tudo e o
seu contrário e acabamos por não nos fazermos minimamente entender.
Não fôssemos nós humildes, modestos e conscientes de
que se alguém não nos entende é por culpa nossa, e atreveríamos-nos a citar o
grande Almada Negreiros, mas como sabemos bem que somos frequentemente
confusos, vamos só adaptar, ao invés de citar, um seu célebre dito.
O dito original de Almada é este: “Todos os meus
livros devem ser lido pelo menos duas vezes para os muito inteligentes e daqui
para baixo é sempre a dobrar.” A nossa adaptação é a que se segue: “Todos os
nossos textos podem ser lidos pelo menos duas vezes, o de ontem e anteontem
também, e estão já aqui em baixo”.
Como é patente, não é uma adaptação particularmente brilhante, mas o nosso ponto é que os nossos textos de ontem e anteontem contextualizam o de hoje. Para além disso, são melhores e mais claros do que este que presentemente escrevemos. Ou muito nos enganamos, ou o texto de hoje vai perder-se em contínuos rodeios, sem nunca chegar verdadeiramente a lado nenhum, o de ontem e de anteontem é que são bons.
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Não sabemos quantos terão ido ler os nossos textos
anteriores, mas seja como for, sigamos em frente e tenhamos esperança que o
texto do dia de hoje também venha a ter o seu valor.
Antes de irmos como inicialmente anunciámos aos The
Beach Boys, retornemos ao dia de ontem, às selfies, à pressão da imagem e à
maquilhagem infantil. Façamos uma relação entre esses temas e um
marechal-de-campo russo. Um que viveu no século XVIII e servia a Czarina
Catarina II da Rússia. O seu nome era Potemkin.
Potemkin e selfies?! Não vale a pena porem-se a pensar, nós bem vos tínhamos avisado que não era fácil, que por vezes tudo se confunde e emaranha. Dito isto, reza a história que em 1737, a Czarina Catarina II realizou uma excursão à então recém-anexada região da Crimeia. Potemkin líder militar do império russo e amante da czarina, ordenou então a construção de várias aldeias de fachada ao longo do percurso. Isso para que da sua carruagem, a monarca as contemplasse e considerasse um imenso sucesso a tarefa que havia atribuído a Potemkin, ou seja, que urbanizasse toda a região.
Não sabemos se é agora clara a relação entre selfies,
“a pressão da imagem”, a maquilhagem infantil e as aldeias Potemkin. Talvez
sim. Assim sendo, vamos lá então aos Beach Boys. Mas ainda antes, regressemos a
anteontem, aos valores tradicionais e às famílias perfeitas que havia na
América da década de cinquenta.
Era a América dos “The Golden Years”, existia uma
grande prosperidade e todos viviam bem. Na família típica a senhora do lar
possuía magníficos e modernos eletrodomésticos, o senhor trabalhava num
escritório na cidade, a casa tinha garagem e terreno ajardinado, as crianças
eram obedientes e tinham espaço ao ar livre para correr e brincar e ao domingos
iam todos à igreja local. Acrescente-se também, que a vizinhança era toda
simpática e com vidas em tudo semelhantes.
Quem vê a imagem acima que nos mostra os Anos 50
norte-americanos e o momento em que após o labor o papá regressa ao lar, e a
compara com a anterior que nos mostra uma aldeia Potemkin, não pode deixar de
pressentir a estranha afinidade existente entre elas. Ambas nos dão
imediatamente uma sensação de estarmos num cenário de ficção, de serem uma
encenação. Vejamos uma outra imagem, esta abaixo
Estamos em 1952, dois chefes de família leem
tranquilamente o seu jornal num espaço ajardinado, são vizinhos e amigos. Ao
fundo vemos os seus lares e percebemos que são cenários. A foto foi retirada de
uma curta-metragem de Norman McLaren, “Vizinhos”. O filme tem oito minutos, os
suficientes para toda a encenação de calma e harmonia ser completamente
destruída. No fundo, era tudo maquilhagem e “a pressão da imagem” resultou no
caos total. É verem.
Vamos lá agora aos The Beach Boys, que como todos
sabem foram uma banda formada na Califórnia nos finais dos anos 50. A maior
parte dos elementos eram irmãos, havia também um primo e um amigo da
vizinhança.
Os The Beach Boys pareciam a imagem perfeita da “Sunny
Califórnia”. As suas melodias aparentavam ser otimistas e falarem apenas de
coisas agradáveis e leves, como velozes automóveis, miúdas giras, praia, Verão
e surf. Todavia, por detrás dessa fachada de leveza e felicidade, o que
verdadeiramente existia era imensos conflitos, problemas com drogas e
perturbações mentais como a esquizofrenia do seu líder e compositor, Brian
Wilson.
Apesar da sua aparência de surfista, Brian Wilson
correspondia mais ao estereótipo de génio louco, do que a outra coisa qualquer.
Ele próprio o sabia, tanto que um dia numa entrevista disse assim: “I think I
need the demons in order to write…”.
Havia algo de inefavelmente triste nos seus olhos, as
suas mais célebres canções, quando vistas à superfície, celebram o Verão, o
surf e a juventude californiana, no entanto, se formos ver o lado B de muitos
singles dos The Beach Boys, encontraremos títulos mais outonais, como por
exemplo “The Back Of My Mind”, ou apelos ardentes por amor, ”God only knows”,
ou ainda desejos de solidão como “In My Room”.
Para Brian Wilson, os carros, as miúdas, o surf e a
praia mais não eram do que um cenário, uma espécie de fachada. As suas melodias
alegres e divertidas inspiravam-se nos seus estudos de compositores eruditos
como Bach, Mozart e Beethoven, só que a América de então não queria
profundidade, nem melancolia. Preferia ter de si a imagem do “American Dream”,
mesmo que o sonho, para lá da fachada, tivesse momentos de autêntico pesadelo.
Provavelmente, o atual excesso de uso de maquilhagem nas crianças de que ontem falámos, o uso e abuso das selfies e a insistência no
retorno aos tradicionais valores familiares, mais não seja do que isto mesmo,
ou seja, a tentativa de se edificar como Potemkin um lindo cenário, por detrás
do qual ou há pesadelos ou um imenso vazio.
Terminamos com um outro sonho, uma canção dos The
Beach Boys, “Your Summer Dream”, que pode ser linda como uma mera canção
romântica, mas que também pode ser lida e escutada como um anseio por sermos algo de
consistente e real e não apenas uma imagem. E assim terminamos o texto de hoje.
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