Será este o
terceiro capítulo dedicado a autores indispensáveis e difíceis. Ao dia de hoje,
o nosso escritor é Tolstói, o autor de “Guerra e Paz”. O romance relata-nos a
vida de cinco famílias durante a invasão da Rússia pelas tropas napoleónicas,
sendo que, Tolstói criou nada mais, nada menos, do que 580 personagens para nos
contar essa história.
Só por aqui
já se adivinha que é um livro difícil, mas já agora refira-se também que o
romance tem cerca de 1500 páginas, número aproximado, pois depende do tamanho
da letra de cada edição. Salienta-se ainda que a história desenrola-se ora em
Moscovo, ora em São Petersburgo e há quem fale em russo, e quem fale em
francês, língua que era usada quotidianamente pelos czares e pela nobreza.
Entre os
personagens principais destacamos Pierre Bezukhov, André Bolkonski, Nicolau
Rostov, Anatoly Kuragin, e também Natasha Rostova, Maria Bolkonskaya e Helena Kuragina.
Houve quem
se dedicasse a fazer mapas e esquemas, para que os eventuais leitores de
“Guerra e Paz” não se perdessem na história nem confundissem Bolkonskaya com
Bezukhov ou Bolkonski, ou Kuragin com Kuragina e Rostov com Rostova.
Aqui chegados, já não há quem não tenha percebido a razão por que “Guerra e Paz” de Tolstói é um livro difícil, resta-nos perceber por que é indispensável.
Mas ainda antes de aí irmos, recordemos que os nossos dois textos anteriores desta série “Ler livros serve para alguma coisa? Sim, os indispensáveis e difíceis como os de…”, foram dedicados a Homero, o poeta da Guerra de Tróia, e a Shakespeare, o bardo, do qual destacámos a peça “Henry V” que nos fala da Guerra dos 100 anos, e “Hamlet” que nos fala das nossas guerras interiores e nos diz “Ser ou não ser eis a questão”.
Aqui ficam os dois capítulos anteriores:
https://ifperfilxxi.blogspot.com/2024/06/ler-livros-serve-para-alguma-coisa-sim.html
https://ifperfilxxi.blogspot.com/2024/06/ler-livros-serve-para-alguma-coisa-sim_5.html
Voltemos
então a Tolstói e a “Guerra e Paz”. Tentemos resumir numa frase, aquilo de que
trata o romance. A ação decorre entre 1805 e 1820, Napoleão já invadiu a maior
parte da Europa e vai fazer o mesmo à Rússia, nisto, a nobreza czarista passa
os dias em bailes e festas, sendo a guerra o assunto em voga e o tema de todas
as conversas. Em resumo resumido, é esta a história dos 580 personagens que se
desenvolve por 1500 páginas.
Mais abaixo,
transcrevemos uma dessas conversas de salão, que se tinham entre duas danças,
enquanto Napoleão marchava com os seus exércitos vindos desde França, e
avançava já em direção a Moscovo.
Como se verá
pela conversa, na Rússia de então não se cria que a Áustria, a Inglaterra, ou a
Prússia, as nações mais poderosas à época, conseguissem impedir Napoleão de
dominar a Europa inteira. Nenhum desses países queria a guerra, sendo esse
desejo de paz considerado pelos russos como uma traição e uma cobardia.
O Czar
Alexandre, esse sim, seria o salvador. Apenas ele era capaz de evitar a vitória
de Bonaparte e da revolução que trazia consigo. O Czar era um ser divino,
alguém sem igual. O único com coragem para lutar. Aquele que tal como os
olímpicos heróis da antiguidade clássica, faz a guerra sem medo e pelos seus
valorosos feitos no campo de batalha se cobrirá de honra e de glória por toda
eternidade.
Claro que
não foi nada disso o que sucedeu, mas aqui fica o tipo de diálogos que havia
nos bailes antes da entrada de Napoleão na Rússia: “No meio da conversa sobre as atividades políticas, Anna Pávlovna
exaltou-se. — Ah, nem me fale da Áustria! Talvez eu não entenda nada, mas a
Áustria jamais quis e não quer a guerra. Ela atraiçoa-nos. A Rússia sozinha
deve ser a salvadora da Europa. Nosso benfeitor sabe da sua elevada missão e a
ela será fiel. É a única coisa em que acredito. Nosso bondoso e admirável soberano
desempenha um papel colossal no mundo e ele é tão virtuoso e bom que Deus não
vai abandoná-lo e ele há de cumprir a sua missão de esmagar a hidra da
revolução, que agora está ainda mais horrenda na pessoa desse assassino e
celerado. Só nós devemos redimir o sangue dos justos… Em quem vamos depositar
esperanças, pergunto ao senhor… A Inglaterra, com seu espírito comercial, não
compreende e não consegue compreender toda a estatura do espírito do imperador
Alexandre. (…) Não compreendem, não conseguem compreender a abnegação do nosso
imperador, que nada quer para si e quer tudo pelo bem do mundo. E o que eles
prometeram? Nada. E mesmo o que prometeram não se vai realizar! A Prússia já
declarou que Bonaparte é invencível e toda a Europa nada pode contra ele… Creio
no único Deus e no destino elevado do nosso querido imperador. Ele salvará a
Europa.”
Após longas
batalhas, em 1812 Napoleão estava às portas de Moscovo. A cidade esvaziou-se,
mas antes de partirem os habitantes locais deitaram-lhe fogo. Um incêndio
tremendo e sem controle tudo consumiu. Bonaparte tinha vencido, mas o que
conquistou foi um imenso monte de cinzas.
Abaixo
Napoleão e as suas tropas à beira do Volga a ver Moscovo a arder.
“Tempo e
paciência são os mais fortes guerreiros”, é uma célebre frase de Tolstói que
é amplamente citada a propósito de tudo e de nada. O facto é que na cidade
queimada e abandonada, as tropas de Napoleão amotinaram-se, pois não havia
lugar onde se recolherem e nada havia para comer.
Bonaparte
acreditava que o Czar iria assinar um acordo de paz após a invasão de Moscovo,
mas esperou 36 dias e tal não sucedeu. Sem provisões e com o tempo a começar a
arrefecer, Napoleão não teve outra solução, que não fosse retirar e voltar para
trás.
A pouco e
pouco mais foi recuando, acabando por ter de retirar de forma definitiva e
regressar a França com o seu exército reduzido a um décimo dos seus homens e
completamente batido e humilhado.
Cremos que atingindo este ponto, já todos terão entendido a razão pela qual Tolstói é um autor indispensável, e muito em específico, o seu livro “Guerra e Paz”.
Há
muitas lições a aprender lendo essa obra, entre elas, a de que mesmo o mais
poderoso dos exércitos, com tempo e paciência, pode ser derrotado.
Há também a
lição de que por vezes o que aparenta ser uma enorme conquista, como parecia
ser a de Moscovo, afinal mais não é que um imenso monte de cinzas.
Na Rússia Tolstói não é tão-somente considerado o melhor romancista de sempre, é também uma espécie de santo. O que não é de estranhar, pois durante a sua vida fundou escolas para os pobres, tentou melhorar a vida dos camponeses e fez de tudo para os elevar espiritualmente. Ainda para mais, renunciou à sua fortuna e viveu de modo austero e sério.
Abaixo um retrato de Tolstói enquanto andava pelos campos de pés nus, em contacto com a terra e em harmonia com a natureza, tal qual um piedoso monge.
Tolstói escreveu "Guerra e Paz" para ser lido por toda a humanidade. Não tinha a intenção de escrever para que alguém se entretivesse a lê-lo, mas sim para que da sua leitura, profundas lições fossem retiradas.
No fundo, certamente que lhe passou pela cabeça que "Guerra e Paz" pudesse ser uma nova bíblia, o livro que fundasse uma religião.
Dito isto, também escrevia para públicos menos vastos, como por exemplo para a sua mulher Sophia. Apesar de viverem na mesma casa, Tolstói escreveu-lhe abundantes cartas, às vezes mais que uma por dia, durante décadas. E isto também é uma lição, que a escrita não pode ser substituída por mais nada, por mais difícil que possa ser, ainda assim é indispensável.
Bem recentemente, Frederick Wiseman realizou um filme no qual apenas se lê as cartas de Tolstói para Sophia e vice-versa. Ah... também tem imagens.
Aqui fica o trailer:
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