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Que vacina tomar para a infodemia? A terceira e última dose.

 


Nos nossos dois textos anteriores falámos da infodemia, ou seja, no enorme fluxo informativo sobre um assunto, que cresce velozmente num curto espaço de tempo e se prolonga indefinidamente. A infodemia está igualmente associada a uma torrente de informações indistintas, na qual não se separa o que é essencial do acessório, o importante do irrelevante e o banal do fundamental ou urgente.

Aqui ficam os nossos dois textos anteriores:

https://ifperfilxxi.blogspot.com/2024/06/que-vacina-tomar-para-infodemia-hoje.html

https://ifperfilxxi.blogspot.com/2024/06/alerta-faltam-vacinas-contra-infodemia.html

 

Para hoje tínhamos prometido uma terceira dose de uma vacina contra a infodemia, e como o prometido é devido, trazemos uma que veio da Coreia do Sul, a obra do filósofo Byung-Chul Han, que nasceu em Seoul em 1959, mas que desde há décadas que vive e trabalha na Alemanha.

 

Para iniciarmos, nada melhor de que “No enxame”, um livro do dito autor publicado em Portugal em 2016. Nessa obra Byung-Chul Han fala-nos do “enxame digital", ou seja, de uma massa de indivíduos isolados, sem alma, sem ação coletiva, sem significado e sem expressão, que pela sua constante agitação destrói o silêncio e provoca um imenso ruído completamente inconsistente.

 


O que isto significa, é que o permanente e intenso zumbido causado pelo fluxo informativo digital e não só, não obedece a nenhum sentido ou critério, consiste tão-somente numa acumulação de informações dispersas, que vão desde a mais importante à mais irrelevante, sem qualquer ordem ou hierarquia aparente.

 

As notícias sucedem-se ininterruptamente e num determinado momento estamos a ler sobre o eclodir de uma guerra, para no instante seguinte estarmos a ser informados acerca dos problemas emocionais de uma qualquer celebridade menor. 

 

Todo este contínuo rol de informações, intensifica-se ainda mais nas redes sociais, em que simultaneamente tanto se sabe o que almoçou a vizinha do lado, como qual o evoluir do conflito na Palestina.

 

Em síntese, neste contínuo fluxo informativo não há atualmente um momento de pausa e sossego que nos permita digerir, pensar e organizar o que lemos, ouvimos e vemos. 

Nada está feito para que possamos parar, ter um pouco de silêncio, e assim ganhar a necessária distância para olharmos atentamente para os outros e para o mundo em nosso redor.       

 


Uma certa distância e um pouco de silêncio são dois dos principais elementos constituintes, desta terceira dose da vacina contra a infodemia que hoje vos propomos.

“No enxame” Byung-Chul Han associa esses elementos à noção de respeito. O respeito pressupõe sempre uma certa distância e um pouco de silêncio. 

Pensemos em como espontaneamente baixamos a voz e guardamos um certo recolhimento ao entrarmos numa igreja ou na sala de espera de um consultório médico.

O respeito que resulta de se guardar alguma distância e um pouco de silêncio, não deve ser confundido com frieza ou indiferença, não é de nada disso que se trata.

Não é por acaso que numa igreja ou num consultório médico naturalmente guardamos um pouco de silêncio e distância, não é sequer por não querermos incomodar quem eventualmente também esteja nesses locais, é sim por naturalmente reconhecermos que estamos perante um mistério, que tanto pode ser da ordem do divino e espiritual, como da ordem do físico ou corporal.

Se pensarmos nisso, muitas vezes também diante de uma bela obra de arte ou de uma sublime paisagem, e mesmo que não haja ninguém nas redondezas a quem possamos incomodar, guardamos igual respeito, permanecendo a uma certa distância e em silêncio. Também nesse caso, pressentimos que estamos perante um mistério, ou seja, perante algo que nos ultrapassa e cujos limites não devemos violar, mas sim respeitar.

Ir para além dos limites dos mistérios daquilo que nos ultrapassa, é tão-somente banalizar o que temos pela frente, roubar-lhe a magia e fazer com que sejamos levados na enxurrada informativa de imagens e palavras que constitui a infodemia.

Abaixo vemos uma pintura de Caspar David Friedrich, “O Viajante sobre o mar de névoa” de 1818.  Nela pressente-se o respeito do viajante pela misteriosa e sublime montanha com que se depara. Imagine-se esse mesmo local ao dia de hoje, com hordas de turistas aos gritos, todos a acotovelarem-se na tentativa de tirarem uma selfie para logo em seguida a publicarem numa qualquer rede social.

Perante tal desrespeito, ou seja, à falta de alguma distância e de um pouco de silêncio, todo o mistério da montanha se desfaz num instante, e o que antes era sublime passa a ser lixo, sendo parte da enorme torrente de imagens banais que continuamente se publicam na internet.

 


Mas se o mistério inerente a uma igreja ou a uma catedral, a uma montanha ou a um deserto e a uma bela obra de arte nos pede algum silêncio, uma certa distância e respeito, outro tanto sucede com cada ser humano. Cada pessoa é em essência um mistério, razão pela qual, também neste caso há limites que não deveremos ultrapassar, isto sob pena de destruirmos o que de mágico e sublime há em cada um de nós.

Respeito para com o outro, qualquer outro, significa ter em consideração os limites, ou seja, que o outro tem uma esfera de privacidade e intimidade que é só sua.

É muito fácil irmos à internet e consultarmos um qualquer site ou rede social e imediatamente vermos todo o tipo de invasões e violações da esfera privada e íntima de muitas e variadas pessoas. Sejam essas pessoas figuras públicas ou gente simples, o facto é que há milhões de notícias, publicações e imagens em cuja não existência do mínimo de respeito pelo outro salta à vista.

 

Não raras vezes, são até os próprios que expõem toda a sua vida ao público em geral, o que comeram, com quem estão, aonde foram, o que fizeram e tudo e mais alguma coisa.

Precisaremos verdadeiramente de saber os pormenores privados ou íntimos, da vida de uma qualquer celebridade, de um simples amigo, de um vizinho do lado, de um colega de serviço ou de um mero desconhecido? Se calhar não.

 

No entanto, segundo Byung-Chul Han, na atual sociedade exige-se que tudo deva ser visível e transparente, não há lugar para a menor sombra ou mistério, quer-se saber tudo de tudo e de todos. Ou melhor, na verdade não quer saber-se nada, quer-se apenas que tudo esteja exposto, que não haja quaisquer limites para o que pode ser visto e comentado.



A transparência parece-nos uma coisa positiva, tendemos a associá-la à sinceridade, à verdade, à honestidade e à virtude. Em sentido oposto, tudo o que não é transparente tem um significado pejorativo e associa-se à ocultação, à falsidade e à mentira. No entanto, segundo Han, as coisas não são bem assim, é tudo bastante mais complicado e complexo.


 “As coisas tornam-se transparentes quando eliminam de si toda e qualquer negatividade, quando se tornam rasas e planas, quando se encaixam sem qualquer resistência ao curso raso do capital, da comunicação e da informação.

Para que as coisas se compliquem e se complexifiquem, nada melhor do que começarmos pela palavra “negatividade”. À partida, “negatividade” parece uma coisa negativa, mas se a interpretarmos no sentido em que Byung-Chul Han a usa, “negatividade” significa aquilo a que não temos um acesso imediato, o que nos escapa, a essência escondida, enfim, o sal da vida, ou seja, o outro lado das coisas. 


"As imagens tornam-se transparentes quando, despojadas de qualquer dramaturgia, coreografia e cenografia, de toda a profundidade hermenêutica, de todo o sentido, tornam-se pornográficas, que é o contacto imediato entre imagem e olho."

A transparência é o desrespeito de que basta olhar, mesmo que sem a mínima atenção, para se ver. Vejamos, tudo tem uma história, uma profundidade, uma negatividade, ou seja, um outro lado.

 

Um lado que só se revela quando se ganha distância e silêncio, respeito.



"As coisas tornam-se transparentes quando depõem a sua singularidade. A comunicação alcança a sua velocidade máxima ali onde o igual responde ao igual, onde ocorre uma reação em cadeia do igual. A negatividade da alteridade e do que é alheio ou a resistência do outro atrapalha e retarda a comunicação rasa do igual”.


Em resumo, o que se quer nesta sociedade que exige transparência e comunicação total, é que todos vejamos e sintamos de forma superficial, de modo a que cada um seja igual a todos os outros. 

Uma vez que não haja mistérios e em que tudo seja idêntico, a torrente informativa flui sem qualquer obstáculo e de forma permanente, consequentemente, vivemos então em plena infodemia. 

Mas para a combater estamos cá nós, para vos aconselhar uma vacina, neste caso, a leitura das obras de Byung-Chul Han...


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