Findamos com o presente texto, uma série de três dedicados à Rua do Benformoso e à zona que a circunda, o bairro da Mouraria.
Independentemente da pertinência e validade do conteúdo de tudo o que escrevemos, o que mais nos enche de orgulho e contentamento e não queremos deixar de assinalar, é o quão inventivos fomos nos títulos deste trio de textos.
Com efeito, mesmo que tudo o resto que neles escrevemos pouco ou nada valha, o facto é que conseguimos com quase as mesmas exatas palavras compor três títulos diferentes, mas muito semelhantes. Por alguma razão, que nem nós próprios percebemos qual, tal deixa-nos imensamente contentes e satisfeitos.
Bem sabemos que quem nos lê, há de pensar ironicamente de si para consigo “mas que grande feito três títulos diferentes mas quase iguais, pff….”. No entanto, e mesmo que os leitores desdenhem da nossa imensa alegria, para nós o tríptico de títulos distintos, mas afins constitui uma enorme proeza literária, que mereceria ficar para a eternidade como uma das maiores façanhas deste blogue.
Atentem bem nesta divina triologia de títulos e digam lá se não é uma coisa para nos sentirmos inchados:
- Hoje há teoria da conspiração: a Rua do Benformoso nº1
- Rua do Benformoso n° 2: hoje temos teoria da conspiração https://ifperfilxxi.blogspot.com/2025/01/rua-do-benformoso-n-2-hoje-temos-teoria.html
- Temos e há teoria da conspiração: hoje Rua do Benformoso nº3
Devidamente realçado o primeiro ponto relativo aos títulos, vamos então a um segundo. Em todos os três títulos referimos a existência de uma teoria da conspiração, todavia, em nenhum dos dois anteriores escritos dissemos seja o que for acerca disso, por consequência, a pergunta que se impõe é se o vamos fazer nesta terceira e última redação dedicada ao assunto, ou não.
Desfazemos desde já o suspense, dizendo claramente que não. Ou seja, que apesar de anunciarmos em três títulos diferentes uma teoria da conspiração, nada vamos dizer acerca de tal tema.
Bom, talvez digamos um pouco, pois para nós, o recente e imenso destaque dado pelas notícias e pelos políticos à Rua do Benformoso e ao bairro da Mouraria não é inocente, ou seja, existe um interesse escondido e obscuro em tudo isto, uma qualquer conspiração destinada a causar um efeito que por ora ninguém está a ver (e nós também não).
A verdade é que não conseguimos compreender, como é que uma zona que ao longo da história sempre foi um território esquecido por onde deambulava gente que vive com a alma à margem, como por exemplo mouros, fadistas, prostitutas, alguns artistas, bêbados, poetas e imigrantes, se tornou agora alvo de grande atenção mediática.
O que terá sucedido nos últimos tempos para a Mouraria passar a ocupar o centro do palco? Procurámos, pesquisámos, matutámos e não conseguimos vislumbrar diferença alguma do antes para o agora, que justifique tanto destaque.
Tudo o que por lá existe já existia há muitos e bons anos, e o que dantes por lá existia, em certos recantos ainda persiste, portanto qual é a novidade?
De resto, quem vivia ou passava pela Mouraria não era propriamente uma gente ordeira, que fosse muito respeitadora da moral e dos bons costumes. Abaixo uma foto de uma farra numa tasca, acompanhada por fados e guitarradas e regada com pinga da pipa.
Nos nossos dois anteriores textos, tentámos explicitar a ideia de que a Mouraria se caracteriza por ser um sítio de gente de alma à margem, ou seja, um território mais arisco ao cumprimento das regras e dos preceitos estabelecidos e habituais. Precisamente por essa razão, sempre foi um lugar propício para dar asas à criatividade e a atividades artísticas.
Há logo um primeiro exemplo disso mesmo, ainda referente ao tempo dos mouros, a saber, a arte mudéjar de origem portuguesa. Foi quando os mouros viviam na Mouraria, por ter sido esse sítio a eles destinado por D. Afonso Henriques após a conquista de Lisboa, que aí se inventou a milenar arte mudéjar (ou luso-mourisca), que posteriormente viria a ter uma influência determinante na criação do estilo manuelino.
Contudo, o estilo luso-mourisco atravessou os séculos e aparece em edifícios do século XIX como o Palácio Nacional da Pena em Sintra, o Palácio da Bolsa no Porto, a Casa do Alentejo e a Praça de Touros do Campo Pequeno em Lisboa. A influência moura entrou pelo século XX adentro e é bem visível, por exemplo, numa obra do arquiteto Souto Moura no Algarve, esta na imagem abaixo.
Após os mouros, a Mouraria haveria de tornar-se o epicentro da criatividade vadia, pois foi pelos seus lugares que nasceram alguns dos mais consagrados fados.
Foi a liberdade, a vadiagem e a libertinagem com que as gentes desse bairro viviam, que deram origem a versos imortais, como por exemplo, aquele em que se canta uma das suas mais afamadas ruas:
Ó rua do Capelão juncada de rosmaninho
Se o meu amor vier cedinho
Eu beijo as pedras do chão
Que ele pisar no caminho
No início do século XX, é também pelos lados da Mouraria que vamos encontrar um poeta à margem, arisco e criativo, cuja vida desafiou as regras e os preceitos estabelecidos e habituais. ~
Nascido a 9 de Agosto de 1923 por acaso na Damaia , onde os pais estavam a passar férias numa quinta, Mário Cesariny cresceu na velha Rua da Palma, junto ao Martim Moniz.
Criado no coração dessa zona da cidade, em criança deambulava por tascas onde se cozinhavam grelos, bacalhau assado e iscas fritas. Mais tarde, já mais crescido, jantava em casa e saía para as ruas, bares e cafés até altas horas.
Segundo disse, tudo lá parava por esses sítios: prostitutas, travestis, todos os marginais e toda a tropa que andava ao engate, fuzileiros, comandos e paraquedistas.
Volta e meia a polícia detinha Cesariny por vadiagem, mas isso não o impedia de continuar a andar na má vida. Em qualquer dos casos, foi ele que escreveu alguns dos mais belos poemas da literatura portuguesa do século XX, como por exemplo este:
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
Se pensarmos bem nisso, vamos verificar que a rua é um tópico poético em muitos versos de fados que cantam a Mouraria, a Rua do Capelão, a Rua da Palma e outras mais. Tal e qual como a rua é assunto de muitos versos de Cesariny. Cremos que isso não é uma coincidência, pois a sua poesia está intimamente ligada à Mouraria, assim como esta está ligada ao fado vadio.
Ao que nem a poesia de Cesariny, nem o fado vadio, nem a Mouraria estão ligados é às gentes de bem, essas que agora se manifestam e clamam a Mouraria “é nossa”. Não é. É sim, sempre foi e será, daqueles que vivem de alma à margem, do modo como um dia disse Cesariny num seu célebre dito: “Só há três maneiras de viver neste mundo: ou bêbado, ou apaixonado, ou poeta”.
A Mouraria é desses, mas também dos que a fizeram ao longo da história e a fazem a cada dia: os mouros, os fadistas, as prostitutas, alguns artistas, vadios e uns quantos imigrantes vindos de outros continentes.
Terminamos este nosso tríptico com “Um resto de Mouraria” cantado por Pedro Coutinho:
Comentários
Enviar um comentário