A imagem acima é do filme “Quem espera por sapatos de defunto morre descalço”.
Posto isto, mudemos de assunto. Dir-se-ia que há muitos portugueses a fazer comentários parvos nas redes sociais! Vem tal consideração a propósito, de José Pacheco Pereira ter dedicado o seu precioso tempo a ir à Escola n° 1 de Lisboa, explicar à pequenada o que é a democracia.
Essa sua pedagógica e generosa iniciativa, foi recebida “on-line” com apreciações, como esta que se segue, que com uma certa vergonha alheia, aqui reproduzimos: “Será que ele explicou a esses jovens, que Portugal era um País rico, antes de Abril de 74, e que hoje é pobre, Graças as atitudes do maior LADRÃO, de Portugal, o Mário Soares, que protagonizou a pior descolonização, efectuada no Mundo....?? Isso, é que eles deviam ensinar na Escola ..”
Não vale a pena comentarmos tal comentário, ele fala por si, no entanto, vale a pena sim, refletirmos sobre este género de comentários. Olhando para os muitos comentários deste tipo que vemos nas redes sociais, ficamos com uma muito má imagem do nosso povo. Será que este estilo de comentários são um espelho da nação que temos?
Nós queremos acreditar que não, mas por ora deixemos em suspenso essa questão.
Para já, aqui fica a notícia referente à Escola n° 1, publicada no site da Ephemera, a Biblioteca-Arquivo criada por Pacheco Pereira, que é uma das instituições que em Portugal mais faz pela preservação, e por ser um espelho, da nossa memória histórica e cultural coletiva:
Admitamos que os comentários parvos das redes sociais não são efetivamente um espelho do carácter do nosso povo, mas apenas o retrato de quem os faz. Ou seja, admitamos que tais comentários não caracterizam o todo, o coletivo, mas simplesmente indivíduos tomados isoladamente. Nesse caso, onde se esboçará então o reflexo de corpo inteiro da nossa nação?
Em nosso entender, as imagens (pinturas, fotos, filmes…) são dos melhores espelhos, pois refletem um tempo e um lugar, e também as gentes que neles habitam ou habitaram.
Não há melhor forma de compreendemos a Renascença italiana do que observarmos pinturas florentinas, romanas e venezianas desse tempo. Não há modo mais adequado de percebermos a época vitoriana, do que vermos fotografias do século XIX. Filmes, séries e outros programas de televisão da década de 60, mostram-nos imagens desses anos, que nos fazem imediatamente entender o que foi essa era de “peace & love”. Em síntese, as imagens são um excelente espelho, pois dão-nos a ver um reflexo quase perfeito de um tempo, de um lugar e das suas gentes.
Assim sendo, concentremo-nos então em imagens que todos conhecemos e vemos diariamente, a saber, as que enxergamos nos noticiários televisivos.
Se pensarmos nas imagens que os noticiários das televisões generalistas nacionais, a RTP, a SIC e a TVI, dão de nós e do nosso tempo e lugar, constataremos que, o que vemos nesse espelho, não é bonito de se ver e tem pouco ou nenhum interesse.
Para a posteridade, hão de ficar imagens de nós, os de agora, que nos espelham como uma gente cheia de problemas, como uma nação que anda constantemente a lamentar-se e recorrentemente se afunda em sucessivas e variadas crises.
No espelho que são os noticiários das TV’s, Portugal é um sítio em que instituições políticas, transportes, hospitais, escolas, repartições, tribunais e muitas outras coisas mais, parecem não funcionar com a devida eficácia e, por vezes, não funcionar de todo.
Quando um qualquer estudioso em tempos vindouros for fazer a história das últimas décadas deste nosso povo, ao ver os noticiários destes últimos largos anos, vai apanhar um tremendo susto, pois o que verá nesse espelho que são as imagens das Tv’s, será o reflexo de um país completamente abstruso, onde nada ou pouco funciona e no qual só se vê gente queixosa.
Ver as notícias nas TV’s, é sobretudo ver gente que se queixa: ai a reforma que não me chega para as precisões, ai o salário que é baixo, ai a urgência que está fechada, ai a escola que não ensina, ai a ladroagem que para aí anda, ai esta chuva que não passa, ai o calor que para aqui vai, ai o preço da fruta, ai que vizinhança esta, ai que má sorte a minha, ai o Euromilhões que não me sai, ai que isto já não é o que era, ai o que vai ser de nós, ai este trânsito infernal, ai estas greves que não acabam, ai a prestação da casa que não desce, ai que isto é tudo uma canalha, ai que aqueles gajos não jogam nada, ai que Deus nos valha…
Nas imagens dos noticiários das TV’s, o povo português é espelhado como sendo uma gente que só se queixa de tudo e de nada. Neste entretanto, lá longe, em Katowice, a nação vê-se de uma outra maneira.
Para quem eventualmente não saiba, Katowice fica na Polónia, sendo nessa ancestral cidade, que se inicia agora um ciclo de cinema no qual Portugal é figura de proa.
Serão apresentados em Katowice, nada mais, nada menos, do que vinte e três filmes portugueses das últimas décadas. No entanto, essas mesmas películas, serão também mais tarde exibidas em outras das principais cidades da Polónia, como por exemplo, Lodz, Varsóvia e Gdansk.
“Tydzien filmu portugalskiego”, assim se chama o ciclo, ou seja, uma semana de cinema português. Uma em cada uma das cidades, bem entendido, o que feitas as contas dá quatro semanas de cinema português.
Para quem de tal eventualmente não tenha consciência, salientamos que a Polónia não é um país qualquer, é um dos maiores países europeus, tanto em área territorial, como em termos de população.
Como se isso não bastasse, há séculos que o destino da Polónia está ligado a grandes acontecimentos mundiais. Para o provar, não é necessário ir mais longe de que ao século XX. Com efeito, foi a invasão da Polónia pela Alemanha nazi que despoletou a Segunda Guerra Mundial, e no final dos Anos 80, foi nesse país que se iniciou o processo que poria fim ao bloco de leste e posteriormente daria origem à queda do Muro de Berlim.
Dito isto, a única coisa a concluir, é que é uma honra imensa, que um país tão grande e importante como a Polónia, vá dedicar tanto tempo a ver imagens de Portugal.
Se ao invés de como nação nos vermos ao espelho nos comentários parvos das redes sociais ou nas queixas e lamentações diárias que passam nos noticiários televisivos, nos virmos antes no espelho da nossa cinematografia, a imagem refletida que veremos de nós próprios será uma outra, uma muito mais bela, rica e interessante.
Neste blog já temos escrito acerca de alguns desses filmes, que serão exibidos em Katowice, por exemplo, em agosto de 2024, publicámos um texto que intitulámos “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto…com cinema português”, no qual falamos de três dessas obras: “Os Verdes Anos”, de Paulo Rocha de 1963, “O Sangue”, de Pedro Costa de 1989 e “John From”, de João Nicolau de 2015.
Falemos novamente desses três filmes, pois nunca é demais. O primeiro, “Os Verdes Anos”, conta-nos a história de amor de Júlio, sapateiro, e Ilda, empregada doméstica. Ambos vieram do interior do país para Lisboa, na esperança de um futuro melhor. A narrativa passa-se sobretudo em Alvalade, entre a Avenida de Roma e a Avenida dos Estados Unidos, tendo como enquadramento a arquitetura modernista portuguesa da década de 50.
“Os Verdes Anos” é um clássico absoluto, o espelho de um país enredado em contradições insolúveis, que aspirava à modernidade, mas vivia condicionado por um regime que não permitia ousadia. Um país de gente que veio do campo para a cidade e que a princípio se sentiu perdida. Na realidade, “Os Verdes Anos” é um fiel reflexo do país que ainda somos e das aspirações que temos.
Aqui fica um novo e belíssimo trailer, feito de propósito para as plateias estrangeiras:
O segundo filme, “O Sangue”, é uma autêntica obra-prima. Relata-nos a história de dois irmãos, o mais velho Vicente (Pedro Hestnes) e o mais novo Nino (Nuno Ferreira), que tentam lidar com a partida do pai. Contam com a ajuda de uma amiga, Clara (Inês de Medeiros). O filme é uma espécie de poema, sendo uma homenagem aos clássicos do cinema. “É um filme de fantasmas, diz-nos Pedro Costa, o realizador, “nascido do cinema, não da realidade”.
“O Sangue” foi realizado numa época, o final dos Anos 80, em que o país andava desiludido, os mais loucos sonhos de abril tinham-se desfeito, e o que restava agora era um país à mercê do FMI, onde reinava o desemprego e a pobreza, e em que poucos tinham esperança. Mesmo sendo escuro, pressente-se nele uma luz ao fundo, um sinal de que mesmo nos mais difíceis momentos, há uma qualquer realidade poética, que faz com que o país nunca desespere.
O terceiro filme que referimos, é “John From”, de João Nicolau. Aos 15 anos, Rita tem tudo para ser feliz. Longos cabelos loiros, um ex-futuro namorado, uma melhor amiga sempre presente, um verão quente e a plenitude do mundo pela frente.
Rita mora no bairro de Telheiras em Lisboa, local para onde se mudou o seu novo vizinho, acompanhado pela mulher e filha. O vizinho é um fotojornalista, e expõe na biblioteca local fotos de uma reportagem que fez nas ilhas do Pacífico Sul. Rita apaixona-se e tenta a todo custo, mas ingenuamente, seduzir o vizinho. Nada a parece deter, pois não há neste mundo algo tão tenaz e determinado quanto o coração de uma jovem!
No entanto, e como seria expectável, todas as suas tentativas são em vão. “John From” é pois um filme sobre as doces desilusões da adolescência. O que esta película espelha é o Portugal pós-moderno, em que nada é verdadeiramente dramático e em que os sonhos também não são para se levarem muito a sério.
Para além destes três filmes, em Abril de 2024, num texto intitulado “Terá sido o 25 de Abril romântico, abstrato ou antes Pop?”, falámos igualmente da curta-metragem “Revolução”, de Ana Hatherly de 1975.
O filme, com cerca de dois minutos, dá-nos a ver murais de rua e grafites criados em Lisboa durante a Revolução dos Cravos em 1974, criando uma representação visual do espírito revolucionário. Espelha a excitação vívida durante esse período e a sensação de libertação após o fim do regime de Salazar:
De um filme de que nunca aqui falámos, e que também será exibido em Katowice, foi de “Quem espera por sapatos de defunto morre descalço”, obra de João César Monteiro, realizada em 1970.
É um filme inusitado, como o são todos os realizados por João César Monteiro. Para o que aqui nos importa, é um filme que a determinado momento nos fala de espelhos. O que nele se diz é o seguinte:
“Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam, como agora, incomunicáveis. Eram, além do mais, muito diferentes; não coincidiam os seres , nem coincidiam as formas. Ambos os reinos, o especular e o humano, viviam em paz; entrava-se e saía-se pelos espelhos. Uma noite, as gentes dos espelhos invadiram a Terra. Era muito grande a sua força, mas ao cabo de sangrentas batalhas as artes mágicas do Imperador Amarelo prevaleceram. Repeliu os invasores, encarcerou-os nos espelhos e impôs-lhes a tarefa de repetir, como se fora em sonho, todos os atos dos homens. Privou-os da força e da figura e reduziu-os a meros reflexos servis.
Um dia porém, eles hão de sacudir esse letargo mágico.
O primeiro a acordar será o peixe, no fundo do espelho aperceber-se-á uma linha muito ténue e a cor dessa linha não se parecerá com nenhuma outra. Irão depois despertando as outras formas, a pouco e pouco se diferenciarão de nós, a pouco e pouco deixarão de nos imitar. Quebrando as barreiras de vidro ou de metal, desta vez não serão vencidas. Aliadas às criaturas dos espelhos, combaterão as criaturas das águas. Há quem pense que antes da invasão se ouvirá, vindo do fundo dos espelhos, o rumor das armas.”
Aqui um excerto de “Quem espera por sapatos de defunto morre descalço”, no qual se pode escutar o texto que acima transcrevemos:
Hoje ficamos por aqui, mas um dia destes voltaremos a Katowice e aos filmes portugueses que aí serão exibidos, que espelham quem somos como nação de um modo muito mais belo e interessante, que os comentários das redes sociais e os noticiários das televisões.
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