Este será o sétimo e último texto que dedicamos ao Brasil, uma série ao longo da qual falámos de gente como a arquitecta Lina Lo Bardi, dos poetas Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles, da romancista Clarice Lispector, do escultor o Aleijadinho e do cineasta Glauber Rocha.
Fizemo-lo a propósito da imensa exposição que a Fundação Gulbenkian inaugurou por estes dias e cujo título é Complexo Brasil. O semanário Expresso ao noticiar a dita exposição, afirmou que “Portugal olha-se ao espelho e vê um Complexo Brasil: esta exposição não é para principiantes”. Já o jornal Público interrogou-se do seguinte modo: “Na Gulbenkian, Complexo Brasil: conseguiremos olhá-lo nos olhos?”.
Alguns dos maiores jornais brasileiros também publicaram artigos sobre a exposição da Fundação Gulbenkian. Na Folha de São Paulo, o título da notícia era “Exposição põe cultura brasileira de ponta-cabeça em viagem estética e histórica”, no Estadão o título era “Complexo Brasil em Lisboa coloca público diante das belezas e mazelas dos muitos brasis”.
A obra acima é de Caetano Dias, um artista brasileiro, e intitula-se “Os Delírios de Catarina”. É uma obra feita de madeira, metal, açúcar, sangue de boi e resina, contrastando o sabor agradável do açúcar com o amargo que seria trabalhar na produção de cana-de-açúcar no Brasil.
“Os Delírios de Catarina” inclui duas mesas distintas, contraditórias, uma feita de madeira e a outra tingida de sangue de boi. A de madeira branca é uma mera mesa de trabalho suja e desgastada, replica aquelas onde os escravos trabalhavam. A mesa pintada com sangue de boi é redonda e ornamentada, e replica aquelas onde os senhores e donos das fazendas comiam.
A obra também inclui uma grande quantidade de cabeças humanas africanas desmembradas, todas elas feitas de açúcar. “Os Delírios de Catarina” é uma das peças que pode ser vista na exposição “Complexo Brasil”.
Foi no jornal Estadão, que foi publicado um vídeo com umas curtas entrevistas aos comissários da exposição Complexo Brasil. Nessas entrevistas fala-se em levantar questões, em suscitar distintas reações e em reparar feridas e fissuras.
A exposição assenta numa proposta cujo objectivo era não focar apenas uma forma de compreender o Brasil, mas sim concentrar-se no facto desse país ser imensas coisas diferentes e contraditórias ao mesmo tempo.
Muito do que é dito ao longo da exposição, não é na verdade dito, ou seja, não é apresentado de um modo conceptual e racional, mas sim de uma forma sensual e sensorial, razão pela qual, a dança e a música estão presentes. Aqui fica o vídeo:
Neste entretanto, a propósito da exposição da Gulbenkian foram saindo outras notícias nos jornais portugueses, no Diário de Notícias foi publicado um artigo intitulado “Complexo Brasil ou Brasil Complexado?”, e no jornal Sol saiu um outro artigo em que se diz “Complexo Brasil arrasa Portugal”.
A exposição Complexo Brasil tem um ambiente festivo e quiçá até divertido, ainda que, e contraditoriamente, as mazelas, feridas e fissuras estejam lá presentes. Seja como for, nada do que está exposto justifica títulos bombásticos como “Complexo Brasil arrasa Portugal”. Títulos desse tipo demonstram que quem os escreveu, se limita a ver a tremenda complexidade do Brasil e da sua relação com Portugal, de um modo básico, redutor e simplista.
Em boa verdade, a polémica resultou de um dos muitos textos publicados no catálogo da exposição. O dito texto é da autoria da escritora e jornalista brasileira Eliane Brum, sendo o seu título Carta de Desfundação do Brasil, dirigida aos descendentes dos súbditos do Rei D. Manuel I.
Eliane Brum foi considerada pela revista britânica Prospect como a mais influente pensadora da actualidade, foi também vencedora do Prémio Internacional de Jornalismo Rei de Espanha, sendo que, publica regularmente artigos seus em jornais tão prestigiados como o El Pais e o The Guardian.
Em síntese, a controvérsia em torno da exposição Complexo Brasil teve origem em duas passagens do referido texto de Eliane Brum para o catálogo. A primeira é esta: “Individualmente, cada português não é culpado pelo que seus antepassados fizeram. Mas coletivamente, sim, são responsáveis. Se aceitamos as benesses que vieram com o que os antepassados fizeram, o pau-brasil e o ouro ensanguentado que construíram seus monumentos, as heranças coletivas, temos que aceitar coletivamente a responsabilidade por seus assassinatos”.
A segunda passagem é a seguinte: “O que os homens portugueses começaram a fazer aqui, tão logo colocaram suas botas e seus corpos infetados no ventre de areia das praias, seus pénis sifilíticos nas vaginas das mulheres originárias, foi construir ruínas”.
Em nosso entender, o texto de Eliane Brum merece ser debatido, sendo que, debater não é o equivalente a exaltar-se e a ter reacções histéricas em defesa da honra nacional. Em qualquer dos casos, uma coisa é certa, a exposição Complexo Brasil é digna de ser vista e vai muito para além de eventuais polémicas.
Abaixo temos uma imagem do quadro ‘A Redenção de Cam”, obra de 1895, que faz parte da colecção do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, mas que no presente momento se encontra em Lisboa na Fundação Calouste Gulbenkian.
A tela mostra-nos uma espécie de caminho para reverter a "maldição" de se ser afro-descendente. O bebé é o mais branco, seguido pelo pai, sentado ao lado da mãe, que segura a criança no colo. No canto esquerdo, quem tem a pele mais escura é a avó, que com as mãos erguidas ao alto, agradece aos céus por a sua filha, uma mulata, se ter casado com um homem branco e por em consequência disso, o seu neto ter nascido branco, tendo-se assim livrado da "maldição" de ser negro.
O homem sentado com as pernas cruzadas, o marido branco, é o responsável pelo "branqueamento" do descendente. Podemos notar que a gradação de cor segue da esquerda para a direita, mostrando a mestiçagem no seu processo completo.
O chão que o homem pisa é de pedra, mostrando uma evolução em relação ao que as mulheres pisam, que é de terra. O europeu de pele branca é representado como superior, e isso é visível até na pose em que o homem, de costas, olha distante e sorridente para o resto da cena.
A pintura “A Redenção de Cam” é um emblemático retrato do projeto do século XIX de branqueamento do Brasil. Perto dessa pintura, e em contraponto, podemos ver uma fotografia de Carlos Vergara, de 1972, que apresenta três homens negros com a palavra "Poder" estampada no peito.
Na composição da exposição Complexo Brasil, a curadoria evitou divisões temáticas, preferindo antes uma junção de tempos, com peças que pertencem ao século XVII juntas com outras nossas contemporâneas.
O projecto expositivo foi concebido pela cineasta, dramaturga e cenógrafa Daniela Thomas. "A ideia era, a qualquer momento da exposição, perceber todo o espaço e ver essas ondas de significados e de relações das obras entre si", explica ela.
“Me inspirei na minha ídola, a arquitecta Lina Bo Bordi, (https://ifperfilxxi.blogspot.com/2025/11/meu-brasil-brasileirolina-bo-bardi.html) e na forma que ela usou para chegar ao mesmo fim: ter permeabilidade, sem paredes que separam."
Ao centro, na imagem acima, o trabalho Só vou ao Leblon a negócios de Arjan Martins , uma obra de 2016 que nos mostra uma cartografia que põe em relação directa os continentes africano e americano.
A pintura em larga escala desenha um oceano Atlântico atravessado pelas trajectórias dos navios que traziam as pessoas escravizadas de um continente para o outro. Símbolos como a rosa dos ventos, a coroa portuguesa e o navio negreiro, justapostos a figuras negras. O facto do título da obra se referir ao fino, privilegiado, próspero e branco bairro carioca do Leblon, convida-nos a pensar como o passado esclavagista do Brasil se reflecte no seu contraditório presente.
Provavelmente, o símbolo maior do contraditório, diverso e complexo Brasil, é a sua capital, Brasília. A cidade foi erguida do chão como uma representação de progresso e de modernidade, como utopia. Contudo, desde os seus primórdios que as suas contradições são evidentes.
Os seus planos urbanísticos e arquitectónicos foram traçados com linhas puras e futuristas, todavia, e apesar da sua extrema beleza, ao seu lado amontoavam-se os acampamentos nos quais viviam os trabalhadores que erguiam as suas grandiosas praças, ministérios e monumentos.
Abaixo uma foto de um dos bairros em que habitavam os milhares de trabalhadores que do nada construíram Brasília.
Um belíssimo momento da exposição Complexo Brasil é o vídeo acerca da construção de Brasília. As imagens são acompanhadas pelas palavras, magníficas, de Clarice Lispector, lidas por Adriana Calcanhoto.
Clarice Lispector (https://ifperfilxxi.blogspot.com/2025/11/meu-brasil-brasileiroclarice-lispector.html) escreveu duas crónicas sobre Brasília, nesses textos, ela adjectivou a cidade como "gélida", "artificial", "apocalíptica" e "prisão ao ar livre", mas também disse que Brasília era “linda e nua".
“Adoro Brasília. É contraditório? Mas o que é que não é contraditório?”, disse um dia Clarice Lispector. Tal interrogação permite-nos afirmar que a escritora, para decifrar a mais ordenada e planeada das cidades, necessitou de desordenar e desplanear palavras e frases.
“Brasília é construída na linha do horizonte. – Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo…Brasília ainda não tem o homem de Brasília.”
O que Clarice Lispector nos diz é que Brasília é bela, de uma beleza eterna, mas fria e inútil, que não encontra homens que a habitem, no seu dizer é como uma “praia sem mar”.
Numa outra passagem, a escritora interroga-se “Cadê as girafas de Brasília?”. O que percebemos nessa interrogação, é que a cidade sendo bela, quase um milagre (“Quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília”) não possuía verdadeira vida, essa que é feita de múltiplas contradições.
“A cidade de Brasília fica fora da cidade. Essa beleza assustadora, esta cidade traçada no ar. Por enquanto não pode nascer samba em Brasília”.
Ao contrário das brancas, puras e austeras linhas de Brasília, o Brasil é um país de múltiplos excessos e contradições.
O antropólogo, historiador e escritor Darcy Ribeiro afirmou em certa ocasião que o Brasil é “inventar o humano, criando um novo género de gentes, diferentes de quantas haja”. Significa isto, que do lado de lá do Atlântico, o que temos é um enorme e praticamente inédito conjunto de etnias, de culturas, de lógicas, de línguas (quase três centenas) e de religiões, por assim ser, a complexa relação entre Portugal e o Brasil jamais poderá ser reduzida a ideias simplistas, do tipo dessas que aparecem em títulos como o do jornal Sol, “Complexo Brasil arrasa Portugal”.
Em novembro de 1807 para evitar a invasão das tropas de Napoleão Bonaparte, que estavam a caminho de Portugal, D. João VI e a sua mãe, a Rainha D. Maria I, foram para o Brasil, aí estabeleceram a sua corte, tendo decidido que o Rio de Janeiro passaria doravante a ser a capital de Portugal.
D. Pedro IV, Rei de Portugal entre 1826 e 1834, liderou a revolta brasileira e foi ele quem decidiu proclamar junto às margens do rio Ipiranga a independência do Brasil (1822). Logo depois foi proclamado imperador do Brasil e mais tarde regressaria a Portugal.
Após o 25 de abril de 1974, Marcello Caetano e Américo Thomaz, as duas mais altas figuras do Estado Novo, exilaram-se no Brasil, onde viveram o resto dos seus dias. Todas estas histórias e muitas outras mais, deveriam dar que pensar a certos sectores actuais da nossa sociedade, em particular a esses que simplificam o Brasil e a nossa relação com esse imenso país.
Para finalizarmos a canção Samba da Minha Terra de de Dorival Caymmi, que também pode ser escutada numa das salas da Fundação Calouste Gulbenkian na voz de João Gilberto:









Comentários
Enviar um comentário