A RTP está a exibir uma série documental intitulada “10 Mil Km, de Regresso ao Japão”. No texto introdutório à dita série, diz-se o seguinte: “O que podem ter em comum dois países tão distantes quanto o Japão e Portugal? Na verdade, há um intercâmbio de 500 anos para descobrir, que se revela na gastronomia, nos objectos, na moda ou na linguagem. Em 15 episódios, percorremos esta ponte singular de uma amizade de séculos, que tão poucos conhecem.”
Os primeiros episódios da série “10 Mil Km, de Regresso ao Japão” estão disponíveis na RTP Play:
Os portugueses foram os primeiros europeus a chegar por mar à Ásia Oriental e, no caso do Japão, foram mesmo os primeiros europeus com quem esse país teve contacto. Há portanto uma extensa relação entre Portugal e a nação nipónica.
Para conhecermos um pouco mais do Japão, nada melhor do que falarmos do seu cinema e, mais concretamente, dos filmes de três dos maiores cineastas de sempre: Yasujirô Ozu (1903-1963), Kenji Mizoguchi (1898-1956) e Akira Kurosawa (1910-1998).
No anterior texto falámos de Ozu (https://ifperfilxxi.blogspot.com/2025/11/o-japao-esse-velho-desconhecido.html), ao dia de hoje falaremos do enigmático e contraditório Mizoguchi, que, como qualquer japonês bem educado, tanto detestava ter de dar explicações, como ter de se explicar.
Nas narrativas japonesas, seja nas clássicas, seja nas mais contemporâneas, seja nas escritas ou nas filmadas, as pessoas ao terem de escolher entre, por exemplo, o amor de uma filha, de uma mulher ou o dever em geral, tendem a optar pelo dever.
Tal facto é muito visível nos filmes de Ozu, o cineasta de que falámos no nosso anterior texto. Nas histórias contadas por Ozu, as personagens uma vez confrontadas com escolhas, lealdades e contradições sem solução, renunciam ao que efectivamente mais desejam e acabam por se resignar, sacrificando-se e cumprindo aquilo que crêem ser o seu dever.
Nos filmes de Ozu, os mais profundos, íntimos e sentidos desejos dos personagens, geram-lhes dúvidas, inquietações e contradições interiores. Quando pensam seguir o que desejam, confrontam-se com questões como “Tenho um dever para com a minha mulher? Para com a minha amada? Para com os meus filhos? Para com os meus pais? Para com a minha nação? Para com o meu patrão?”. Todas estas são interrogações que atravessam recorrentemente os filmes de Ozu.
A resposta que os diversos personagens de Ozu encontram para as suas contradições, é sempre a de se sacrificarem e de se resignarem, ou seja, cumprem o seu dever em detrimento do que mais intensamente desejam.
Os personagens de Ozu vivem as suas dúvidas, inquietações e contradições fundamentalmente no interior de si próprios, apresentando para o exterior um rosto calmo, passivo e tranquilo. Após tomarem a decisão de se resignarem, renunciarem ao que mais desejam e optarem por cumprir o seu dever, sendo humanos, demasiado humanos, entristecem-se por dentro. De quando em vez, vertem, de forma discreta e furtiva, uma leve lágrima.
Nos filmes de Kenji Mizoguchi, os seus personagens deparam-se com interrogações e contradições semelhantes às que existem nas histórias de Ozu, todavia, há neles uma grande diferença.
Com efeito, os personagens de Mizoguchi não respondem às suas dúvidas, inquietações e contradições sacrificando-se ou resignando-se, crêem ser seu dever perseguir o que mais desejam, obedecendo dessa forma às sagradas leis do seu destino.
Numa cena de um filme de Mizoguchi, há uma mulher que diz o seguinte: “se há alguém que gosta de mim, sofro o que tenho a sofrer”. O que essa exemplar afirmação denota, é que ela, como muitos outros personagens de Mizoguchi, escolhe viver os seus mais profundos desejos como um destino, como o cumprimento de um dever inviolável.
Os personagens de Ozu resignam-se e sacrificam os seus mais profundos desejos em prol do dever, e isto mesmo que não se sintam felizes ou convictos das suas opções., no entanto, não sentem tal escolha como sendo contraditória.
Os personagens de Mizoguchi, de modo distinto, perseguem os seus mais profundos desejos como se tal constituísse um venerável dever, uma sacrosanta obrigação, e também não sentem tal opção como sendo contraditória.
Os personagens de Mizoguchi vão convictamente em frente, sem hesitações, contra tudo e contra todos, e cumprindo o supremo dever de obedecerem ao seu destino.
Abaixo uma imagem do filme de Mizoguchi “Os Amantes Crucificados”, película na qual se conta a história de Osan e Mohei. A acção passa-se no século XVII, Osan era a esposa de um nobre e rico senhor, Mohei um seu empregado.
Num acto de perfeita loucura para aquela época, mas como que em cumprimento de um dever, Osan e Mohei, apaixonados, fogem juntos. Obedecem assim aos seus desejos e simultaneamente a uma imposição do destino. Ao longo da narrativa são continuamente perseguidos mas não desistem da fuga, no fim acabam sendo capturados, julgados e condenados.
Nós, os ocidentais, vemos a renúncia e o sacrifício total dos nossos mais profundos e íntimos desejos em prol do dever, como coisas contraditórias com o nosso ser. Nós, os ocidentais, vemos a resignação absoluta como uma negação de quem somos. Por assim ser, quando nos resignamos ou sacrificamos, e mesmo que acreditemos ser esse o nosso dever, sentimos ainda assim uma espécie de revolta interior, como se a nossa alma tivesse sido vítima de uma injustiça. No entanto, o mesmo não se passa no Japão.
Nós, os ocidentais, raras vezes perseguimos os nossos mais profundos desejos contra tudo e contra todos, como se estivéssemos a cumprir um dever sagrado e a obedecer às leis do nosso destino. Deveres e desejos, no Ocidente são frequentemente realidades contraditórias. No entanto, o mesmo não se passa no Japão.
Genericamente, nós, os ocidentais, não conseguimos aceitar a renúncia e o sacrifício total dos nossos mais profundos desejos, bem como também não conseguimos perseguir o que mais profundamente desejamos contra tudo e contra todos, como se cumpríssemos um dever e um destino.
Nós, os ocidentais, não somos como os japoneses, por norma, não consideramos ser nosso dever fazermos renúncias absolutas, assim como também não cremos ser nosso dever embarcarmos rumo a destinos definitivos.
A cultura japonesa enraiza-se na delimitação das várias situações da vida, sem que estas se contradigam. Permite assim decidir que este é o momento para se ficar embriagado, que este é o momento para se sofrer, que este é o momento de se viver os excessos do amor ou que este é o momento de se trabalhar sem repouso para o bem comum.
A cultura japonesa permite a delimitação das várias situações da vida, permite decidir que, como nos filmes de Ozu, é esta a altura de nos sacrificarmos, renunciarmos e nos resignarmos a cumprir o nosso dever. Permite também decidir que, como nos filmes de Mizoguchi, esta é a altura de perseguirmos os nossas mais profundos desejos e obedecer sem mais ao dever de cumprirmos o nosso destino.
No filme de Kenji Mizoguchi “Contos da Lua Vaga”, cuja história se desenrola no século XVI, o oleiro Genjuro e o seu vizinho Tobei vão à capital vender peças de cerâmica. Tobei deixa a mulher para concretizar o seu imenso desejo de se tornar um samurai.
Genjuro é seduzido pela bela aristocrata Wakasa, transtornado, esquece a esposa e o filho, trocando-os pelo que julgou ser a encarnação viva do seu desejo. Todavia, Wakasa é na realidade um fantasma, uma jovem mulher que morreu sem ter concretizado o seu desejo de experimentar o amor.
Abaixo a sedutora Wakasa, o fantasma que o oleiro Genjuro desejou.
As mulheres tiveram uma forte presença na vida de Kenji Mizoguchi. Ele viveu a maior parte da vida na imperial e ancestral cidade de Quioto, que é uma espécie de museu vivo da maneira de ser e viver japonesa.
Significa isto, que Mizoguchi passava muito do seu tempo nas tradicionais casas de gueixas, onde jantava quase todas as noites acompanhado por mulheres vestidas com belos quimonos.
A relação de Mizoguchi com as mulheres é longa e complexa. A sua irmã foi vendida a uma casa de gueixas, ainda adolescente. A sua mãe sofria maus tratos de um marido abusivo. Anos depois, a sua primeira esposa enlouqueceu e foi internada num hospício. Teve de seguida vários extensos relacionamentos com prostitutas, uma das quais o feriu gravemente nas costas.
Tendo tudo isto em conta, não é de admirar que muitos dos personagens femininos de Mizoguchi sejam bastante fascinantes. Já os homens são frequentemente retratados nos seus filmes como sendo egoístas, cruéis ou fracos.
Em boa verdade, nos filmes de Mizoguchi são quase sempre as mulheres quem representa essa desafiante vontade indomável de perseguir os seus desejos, cumprindo assim o dever de obedecer ao destino.
Abaixo uma imagem de “Rua da Vergonha”, filme de Mizoguchi realizado em 1956.
Nos filmes de Mizoguchi, os homens, por norma, como que correm atrás de meras quimeras. Os desejos que perseguem não são verdadeiramente profundos, mas sim o resultado das suas vaidades ou ambições. É esse o caso dos dois personagens masculinos de “Contos da Lua Vaga”.
O oleiro Genjuro ambiciona enriquecer e viver uma vida de prazeres e de volúpia, porém, esse seu desejo acaba por ser ilusoriamente concretizado através de Wakasa, que na verdade era um fantasma.
O seu vizinho Tobei deseja ser um samurai, contudo, quando o consegue, a sua vaidade conduz-o à desgraça. Abaixo, ao centro da imagem, Tobei, o pobre camponês que imaginou desejar poder ser um grande samurai.
Os filmes de Mizoguchi inscrevem-se na mais antiga sabedoria japonesa, pois neles reencontramos a teoria Zen. No túmulo de Mizoguchi em Quioto, está gravada a palavra 無, que em português significa “o nada”.
“O nada” budista, o vazio original, a fonte de tudo, o útero inicial e sem fim, dentro do qual se gera toda a existência e, por consequência disso, a origem primordial de todas as inúmeras vidas e das suas infinitas contradições.
Abaixo uma foto de Jean-Luc Godard, no dia em que decidiu visitar a sepultura de Kenji Mizoguchi.
Apesar de no Japão existir uma relação muito próxima com o transcendente, há ao mesmo tempo uma relação igualmente forte com a realidade concreta. Por tal razão, os japoneses, têm uma ligação fundamental com o chão.
Não é somente do Zen donde vem a vida e sabedoria nipónica, a sua força e verdade, vêm também do chão.
Numa admirável cena que ilustra essa relação com o chão, Mizoguchi filma uma senhora casada, que é obrigada a fugir de casa para não lhe fazerem maldades. O rapaz que a ama está com ela no cimo de uma serra, ela adormece. Subitamente acorda e vê que o amado está a ser arrastado pela serra abaixo, então precipita-se para ele, agarra-se aos seus pés, e ambos rolam pela colina, pelo seu chão afora.
Dizíamos no início deste texto, que Portugal tem uma longa relação com o Japão, acrescentamos agora, que a tem também com o cinema de Kenji Mizoguchi. Com efeito, em 1963, o cineasta português Paulo Rocha realizou o filme “Os Verdes Anos”, película assumidamente influenciada pela obra de Kenji Mizoguchi.
Abaixo duas imagens, a da esquerda é do filme de Mizoguchi “A Senhora de Musashino” de 1951, a da direita é de “Os Verdes Anos”. Em ambas há um casal que se passeia pelo mato. Na de “Os Verdes Anos”, avista-se à distância os prédios da Avenida Almirante Gago Coutinho em Lisboa.
Em “Os Verdes Anos”, precisamente na cena que se segue à imagem acima, Júlio e Ilda, os personagens principais, também rolam pela colina abaixo, pelo chão afora.
Vejamos o que disse Paulo Rocha numa entrevista: “Quando eu voltei de Paris e comecei a aparecer no Vavá mais ou menos a seguir a Os Verdes Anos, ou durante a rodagem, passávamos as noites em claro a falar do Mizoguchi, era um dos autores que mais vinha à conversa. Não faço a menor ideia, mas se tivesse descoberto na idade própria o Ozu (que só aparece na Europa latina com 15 anos de atraso) julgo que também teria sido muito sensível àquilo. Mas como dizem que eu tenho uma coisa muito forte com a natureza, e tenho tendência para situações melodramáticas extremas, continuaria sempre a ter uma dose maior de Mizoguchi.”
Abaixo mais duas imagens, a da esquerda é novamente do filme de Mizoguchi “A Senhora de Musashino” de 1951, a da direita é outra vez de “Os Verdes Anos”. Em ambas, um casal sentado à beira da água. Na de “Os Verdes Anos” avista-se à distância a Praça do Areeiro em Lisboa.
Paulo Rocha disse um dia o seguinte: “Continuo a ver e a rever os filmes de Kenji Mizoguchi e ainda passo a vida a encontrar coisas que me chocam e as quais fico chocado: como é que ele conseguiu fazer tudo aquilo? E como é que eu, que também fui influenciado por ele, afinal não consegui?”
Kenji Mizoguchi detestava explicações, como qualquer japonês bem educado. Na realidade, todos os japoneses detestam explicações, sendo talvez por isso, que aceitam tão sabiamente as contradições da existência.
Abaixo mais duas imagens, do filme de Mizoguchi “A Senhora de Musashino” e de “Os Verdes Anos”.
E pronto, terminamos este segundo texto dedicado ao Japão e também à sua relação com Portugal. Falámos do cinema de Mizoguchi, mas podíamos ter falado, por exemplo, do jardim da Gulbenkian, que é todo ele japonês. Podíamos ainda ter falado daquele grande pavilhão de Siza na Expo, com um largo lago defronte, que é uma citação mais que directa da grande arquitectura japonesa.
Já falámos de dois cineastas do Japão, Ozu e Mizoguchi, em breve virá o terceiro e último, Kurosawa.











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