A RTP exibe actualmente uma série documental intitulada “10 Mil Km, de Regresso ao Japão”. No texto introdutório à dita série, diz-se o seguinte: “O que podem ter em comum dois países tão distantes quanto o Japão e Portugal? Na verdade, há um intercâmbio de 500 anos para descobrir, que se revela na gastronomia, nos objectos, na moda ou na linguagem. Em 15 episódios, percorremos esta ponte singular de uma amizade de séculos, que tão poucos conhecem.”
Os primeiros episódios da série “10 Mil Km, de Regresso ao Japão” estão disponíveis na RTP Play:
Os portugueses foram os primeiros europeus a chegar por mar à Ásia Oriental e, no caso do Japão, foram mesmo os primeiros europeus com quem esse país teve contacto. Há portanto uma extensa relação entre Portugal e a nação nipónica.
O cinema japonês tem pelo menos três grandes génios: Kenji Mizoguchi, Yasujiro Ozu e Akira Kurosawa. Poder-se-ia dizer que o tom dominante de Kurosawa é o épico; o de Ozu, o lírico e o de Mizoguchi, o dramático. De Ozu e Mizoguchi já falámos nos nossos anteriores textos, hoje é a vez de Kurosawa.
Antes disso, aqui ficam os textos antes dedicados a Ozu e Mizoguchi:
O primeiro filme de Akira Kurosawa de que aqui vamos falar é “Rashomon”, obra de 1950, que em português teve o desajeitado título de “Às portas do inferno”. O termo japonês Rashomon não tem uma tradução literal para português, mas pode dizer-se que se refere à dificuldade em saber a verdade absoluta sobre um acontecimento, quando os diversos testemunhos sobre um mesmo exacto evento são substancialmente diferentes.
No Japão do século XI, um samurai é encontrado morto. Quatro testemunhas, um lenhador, um bandido, a esposa do samurai e o próprio espírito do samurai, invocado por um sacerdote, apresentam versões contraditórias do crime. Quatro relatos diferentes sobre o mesmo facto. Quem é sincero? E os demais, por que razão mentem ou inventam?
Um lenhador, um bandido e um sacerdote abrigam-se de uma forte tempestade nas ruínas do Portão de Rashomon, todos contam a sua versão da história. Nós, os espectadores, vemos em flashback o que cada um deles relata e não temos forma alguma de saber qual dos personagens diz a verdade, mente ou inventa.
Ao longo de todo o filme, o espectador é colocado diante de sucessivas versões dos factos, todavia, nenhuma delas é realmente elucidativa. O que sabemos, é tão-somente que houve um samurai assassinado e que os relatos sobre esse acontecimento são contraditórios, não nos sendo fornecida qualquer outra pista ou explicação adicional.
Akira Kurosawa faz-nos assim entrar nos mistérios eternos da cultura japonesa, perante os quais nada há a explicar. Qualquer japonês bem educado detesta explicações. Na realidade, todos os japoneses detestam explicações, sendo talvez por isso, que aceitam tão sabiamente as contradições da existência e que cada um de nós tem uma história diferente para contar.
“Os homens não conseguem ser verdadeiros nem consigo mesmos, quanto mais com os outros”, diz um dos personagens do filme, sendo que, essa parece ser a grande verdade escondida nessa película de Kurosawa.
Abaixo, o link para se verem as mais belas imagens de “Rashomon”, que muitos consideram o melhor filme japonês de sempre.
O “Efeito Rashomon” é um termo criado pelo antropólogo americano Karl G. Heider. O termo refere-se à subjetividade detectável na percepção e na memória, quando testemunhos do mesmo evento fazem relatos ou descrições substancialmente diferentes, mas todos igualmente plausíveis.
Hoje em dia são muitos os psicólogos, sociólogos, juristas e investigadores que lidam com o chamado Efeito Rashomon nas mais diversas áreas científicas, jurídicas e económicas, contudo, quantos deles saberão que o termo teve origem num filme de Akira Kurosawa, cuja acção se passa no Japão do século XI ?
Em resumo, o filme “Rashomon” é uma bela lição da sabedoria nipónica e um verdadeiro antídoto para estes nossos tempos, em que muitos são os que clamam por certezas absolutas.
Abaixo uma imagem das escadas do arruinado Portão de Rashomon, no momento em que a chuva se abateu copiosamente sobre ele. Nele procuraram abrigo um lenhador, um sacerdote e um bandido.
Kanji Watanabe é um funcionário público que trabalha no mesmo departamento há trinta anos. Tem uma vida monótona, embora outrora tenha sentido a paixão de viver. Um dia, descobre que tem cancro e que morrerá em menos de um ano. Perante a nefasta notícia Watanabe fica bastante deprimido, mas após esse período inicial ele começa novamente a viver intensamente.
Esta é a história do filme “Ikiru” (“Viver”, em português), obra realizada por Akira Kurosawa em 1952. Abaixo uma imagem do personagem Kanji Watanabe caminhando tristemente debaixo de uma forte chuvada.
Vejamos o que nos diz Kurosawa: “Por vezes penso na minha morte. Penso em deixar de ser. Penso – como poderia suportar o meu último suspiro? Enquanto vivo esta vida, como poderia suportar deixá-la? Tenho ainda, sinto, tanto para fazer. Sinto sempre que vivi tão pouco. Isto deixa-me pensativo, mas não triste, e foi destes pensamentos que surgiu Ikiru.”
Possivelmente “Viver” é o mais comovente filme japonês. É um filme profundamente nipónico, mas cujo valor da sua mensagem é universal. Diante da probabilidade da sua própria morte, Kanji Watanabe apercebe-se que a sua vida foi destituída de sentido.
Passou trinta anos no Departamento de Obras Públicas de Tóquio, não faltando ao serviço um único dia, mas sem nunca realizar nada de significativo. Em grande medida, o que o personagem sente é equivalente ao expresso num verso de Alexandre O’Neill:
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Consumido pela constatação de que terá desperdiçado a sua vida, Watanabe decide então gastar de uma só vez, todas as poupanças que acumulou. Encontra um jovem escritor boémio, que conhece casualmente num bar, e entrega-se a uma noite repleta de álcool, de mulheres, de música e de luxuosos restaurantes.
Contudo, realizada essa viagem nocturna, Watanabe dá por si a cantar uma canção da sua juventude, cuja letra melancólica e nostálgica, convida-nos a reflectir sobre a passagem do tempo, sobre os momentos perdidos e sobre a brevidade da vida.
Na manhã seguinte, Watanabe cruza-se com Toyo, uma subordinada sua, que fica curiosa com a súbita ausência dele no escritório. Toyo é o oposto de Watanabe, jovial, exuberante, espontânea e de uma energia quase infantil. Após passar o dia na sua companhia, Watanabe sente um certo alívio na sua dor e tristeza.
Nos dias seguintes, Watanabe volta a encontrar-se com a jovem Toya, e numa conversa diz-lhe o seguinte: “Durante trinta anos naquele gabinete, nunca alcancei nada”. Mas num repente, os olhos dele iluminam-se: “Não! Não é tarde demais! Ainda há algo que posso fazer!”
Os seus subordinados ficam surpreendidos ao vê-lo regressar ao escritório. Nas suas mãos, traz o projecto para a construção de um parque infantil. Watanabe tem agora pela primeira vez na vida um propósito, antes de morrer, vai fazer algo com significado.
No fim do filme, o parque infantil é concluído. Vemos então Watanabe, já próximo da morte, sentado sob a neve num baloiço, cantando novamente uma canção da sua juventude, só que desta vez, em contraste com a cena anterior em que também cantara, emana de si a mais pura felicidade e contentamento.
Em certa medida, “Ikiru” assemelha-se à outra obra-prima de Kurosawa de que antes falámos, “Rashomon”. Nesse filme, um assassinato ocorre e somos confrontados, com os diferentes testemunhos de quatro personagens, cada um deles determinado em defender a sua própria versão dos factos.
Ao constatar que a verdade é inatingível e sujeita a interesses individuais, os personagens de “Rashomon” caem numa melancólica e dolorosa meditação sobre o quão falíveis, egoístas, narcisistas e subservientes podem ser os seres humanos.
Em “Ikiru”, o mistério não é quem matou quem, nem porquê. O mistério é quem foi Watanabe. O que o moveu? O que sentiu ? Como será saber que se vai morrer? Não poderemos nós próprios morrer amanhã? O que faríamos no lugar de Watanabe? Será porventura preciso estar-se perante a iminência da morte, para se conseguir apreciar plenamente a beleza da vida?
Estas são questões que os personagens presentes no velório de Watanabe se colocam a si mesmos e que, inevitavelmente, nós, os espectadores do filme, também acabamos por nos colocar.
No entanto, rapidamente nos apercebemos, de que tal como em “Rashomun” nunca poderemos ter respostas exactas, ou seja, saber a verdade absoluta e completa. É impossível explicitar o que Watanabe pensou, sentiu ou desejou nos meses finais da sua vida, porque não estávamos no interior da sua alma. Dir-se-ia até que seria um tanto rude e indelicado tentar explicitar ou explicar Watanabe, um japonês bem educado, jamais o faria.
E com isto terminamos esta nossa série de três textos dedicados aos maiores mestres do cinema japonês, Yasujirô Ozu (1903-1963), Kenzi Mizoguchi (1898-1956) e Akira Kurosawa (1910-1998).





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