Todos os que já temos uma certa idade, digamos de quarenta e tal para cima, enquanto fomos crianças víamos desenhos animados. Até aí não há grande novidade, nem nenhuma diferença com os miúdos de agora. O ponto é que nesse nosso tempo só havia uma estação de televisão e os desenhos animados tinham dia fixo e hora marcada, normalmente passavam ao sábado à tarde, num programa que era apresentado pelo Senhor Vasco Granja.
O que nós, miúdos de então, queríamos ver eram os filmes do Bugs Bunny e da Pantera Cor-de-Rosa, contudo, antes disso, o Senhor Vasco Granja, que era muito didático, presenteava-nos com dois filmes de animação com origem nos países do leste da Europa.
Na verdade, tanto quanto nos lembramos, o programa do Vasco Granja consistia na apresentação de três curtas-metragens de animação, duas vindas de leste, na maior parte dos casos, e uma outra, a última, vinda dos Estados Unidos, tipo o Bugs Bunny, o Tom e Jerry ou a Pantera Cor-de-Rosa.
Tudo se passava do seguinte modo, “meninos, quem comer a sopa toda”, os dois filmes de leste, “a seguir pode comer um gelado”, o filme norte-americano. À época toda a rapaziada achava os filmes de leste uma estucha, podiam ser muito educativos e etc e tal, mas a malta não queria saber disso para nada, ansiava era por ver as graçolas e tropelias dos personagens vindos da América, isso sim.
Quem já de uma certa idade, não se recorda de quão tristes e depressivos eram os filmes vindos do leste da Europa, mais a mais, quando comparados com o quão vibrantes e cómicos eram os filmes norte-americanos? Quem não se lembra de ficar tristonho e mal-disposto com as obras de animação soviéticas, checas e polacas? Quem?
Pois bem, é precisamente essa sensação de antigamente, que queremos hoje reavivar em vós, neste sexto capítulo desta nossa série de verão, “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto”.
Antes de continuarmos, aqui ficam os cinco capítulos anteriores da série, só para o caso de vos ter escapado algum:
Feito o resumo da matéria dada, avancemos. Entre os filmes de animação vindos de leste, cabe dar especial destaque aos polacos, que é o que nós vamos neste momento fazer. Há outros que são bons, mas os polacos têm qualquer coisa de especial, são bastante mais melancólicos e desesperados que todos os restantes. São mesmo tristes e desesperançados, ou seja, são perfeitos para o efeito a que nos propusemos com esta nossa série de verão: deprimir quem nos lê.
Selecionámos cinco filmes com a clara convicção, que a mensagem transmitida por qualquer um deles, é suficiente para nos deixar a pensar no sentido da vida, no que andamos para aqui a fazer e, por consequência, são excelentes para ficarmos tristonhos e mal-dispostos.
Iniciamos este nosso percurso com “Klatki (Gaiolas)” de 1967, que foi realizado por Mirosław Kijowicz. A história é simples, num espaço completamente fechado estão dois homens separados por uma grade, de um lado um guarda, do outro um prisioneiro. A dado momento, o guarda propõe-se animar o prisioneiro, para tal dá-lhe uma série de sólidos e figuras geométricas. O prisioneiro imediatamente começa a criar imensas esculturas abstratas, contudo, o guarda acaba por não apreciar a liberdade criativa do prisioneiro e retira-lhe os sólidos e as figuras. Vai daí o prisioneiro começa a pensar, e é pelo pensamento que exerce a sua liberdade e criatividade, o guarda também não gosta disso e arranja forma de fazer com que o prisioneiro não pense.
Dada a situação, o prisioneiro tenta fugir por uma pequena janela, o guarda não lhe o permite. Mas pondo-se a pensar, é agora o guarda que tenta fugir pois compreende que também ele está preso, só que, quando se vai escapar, apercebe-se que há um outro guarda que o guarda, que por sua vez é guardado por um terceiro guarda e assim consecutivamente numa sucessão sem fim.
A mensagem do filme é clara, os mais velhos ficam a saber que a sua vida foi um fracasso, pois que de cada vez que conseguiram libertar-se, foi só para seguidamente caírem numa nova prisão, os mais novos ficam a saber que o seu futuro mais não vai ser do que uma sucessão de prisões consecutivas. Como diria o Vasco Granja, é um filme para todas as idades, dos 7 aos 77.
É ver, são sete minutos de garantida depressão:
O segundo filme de animação polaco que cremos valer a pena ver com atenção é “Podróż (Viagem)”, obra de Daniel Szczechura de 1970. Nos primeiros três minutos e meio do filme, um homem viaja de comboio. Olha pela janela diante da qual se estende uma paisagem plana e monótona. Chega a uma cidade, sai do comboio e dirige-se a uma casa. Lá chegado toca a uma campainha, ninguém atende. O homem volta para a estação e nos últimos dois minutos do filme faz a viagem de volta, avistando pela janela a mesma paisagem plana e monótona que tinha visto à ida.
Como todos já terão compreendido o filme é uma metáfora da vida, anda-se, anda-se, anda-se até se chegar a algum lado, lá chegados batemos à porta, e ninguém nos atende e, por assim ser, o melhor é voltar para trás. Em certo sentido este filme faz-nos lembrar o personagem de desenho animado Homer Simpson cujo lema de vida era o seguinte: “tentaste, falhaste, a lição a retirar é não voltes a tentar”.
Tentem ver “Podróż”, de certeza que não se vão arrepender e ficarão com a plena consciência de que por mais que se esforcem e tenham objetivos a cumprir e lugares onde ir, o mais certo é voltarem para trás completamente decepcionados. É uma boa lição para nos deixar tristonhos e mal-dispostos num dia de agosto:
O terceiro filme que vos propomos chama-se “Schody (Escadas)” foi realizado por Stefan Schabenbeck em 1969. Talvez seja um dos mais deprimentes filmes que alguma vez se possa ver. A narrativa consiste simplesmente em alguém que sobe escadas e mais escadas, num universo de escadas sem fim em que nenhumas delas vai dar a lado algum. No entanto, o personagem continua a subir degraus atrás de degraus, sem ter a certeza que caminha no sentido certo ou sequer no errado, sobe apenas degraus, indo ficando cada vez mais cansado, no fim já exausto, cede, acabando por se metamorfosear em mais um degrau, no meio de muitos milhares de outros.
A metáfora aqui presente não é optimista, no fundo é como se andássemos a vida toda a subir escadas, degrau após degrau, vamos ficando cada vez mais estafados, até que um dia tudo acaba, e descobrimos que somos tão-somente mais um degrau tal e qual como os imensos que nos antecederam o foram e os outros tantos que nos sucederão serão. Mais uma vez, é um filme com garantia certa de nos deixar taciturnos e macambúzios:
O quarto filme de que vos queremos falar intitula-se “Bankiet (Banquete)” e é de 1976, tendo sido realizado por Zofia Oraczewska. A ação decorre num salão de festas, ao qual chegam múltiplos convidados que se deparam com uma mesa farta, coberta das melhores e mais diversas iguarias. O problema é que os papéis se invertem e quem acaba comido era quem vinha para comer.
No fundo, o que este filme nos diz é que não andamos cá para festas, quem quer que pense que se vai divertir e alambazar pela vida fora, que se prepare, pois que o mais certo é que nada lhe corra de feição e acabe comido.
O quinto e último filme que escolhemos chama-se “Czerwone i Czarne (Vermelho e Negro)" e foi realizado por Witold Giersz em 1963. Ao contrário dos quatro filmes anteriores este é muito divertido. A ação decorre numa arena de uma praça onde touro e toureiro fazem a sua faina. Nessa coreografia a dois umas vezes leva a melhor o toureiro, outras o touro.
Como vemos pela história ambos se digladiam, sabem que é esse o seu papel na arena, mas ainda assim respeitam-se um ao outro e são cordiais, ao ponto de fazerem uma breve pausa na lide, para juntos partilharem um momento de descanso enquanto bebem uma caneca de cerveja.
A graça e elegância dos movimentos do toureiro, claro está que lhe granjeia a admiração de uma Carmencita que por ali estava, sendo que o señorito que a acompanhava não ficou nada satisfeito. Mas essa eterna rivalidade entre señoritos importantes e galantes toureiros, nada tem de novo, o que é absolutamente surpreendente neste filme, é que quer quem a ele assiste, quer os personagens que nele aparecem, a dado momento tomam plena consciência de que estão ver tinta em movimento.
Com efeito, no filme aparecem os pincéis, os lápis e os frascos com as tintas, com as quais foram feitos os desenhos animados. Inclusivamente, aparece o realizador do filme e o seu cameramen. No fim, touro e toureiro, que na realidade mais não são do que manchas de tinta, são recolhidos pelo seu criador e guardados novamente no frasco donde tinham saído.
Em síntese, também neste filme podemos vislumbrar uma metáfora da vida, é como se nós seres humanos mais não fôssemos do que personagens desenhados, criados, por um qualquer realizador, que no fim nos retira de cena e nos recolhe novamente para o frasco onde tivemos origem.
Como veem, no cinema de animação polaco, até um filme que aparenta ser alegre e divertido, tem uma interpretação metafísica que nos faz pensar na nossa finitude e no desconhecimento que temos acerca de quem nos criou e quais os seus desígnios. Enfim, é um belo filme para reflexões que nos deixem tristonhos e mal-dispostos.
E pronto, com isto chegamos ao fim. Como hão de ter reparado, os filmes de desenhos animados que escolhemos são todos anteriores à década de 80 do século XX, pois eram esses aqueles com que o Senhor Vasco Granja nos presenteava quando éramos crianças e jovens, contudo, o facto é que o cinema de animação polaco continua hoje em dia firme e fiel à sua tradição de fazer filmes esquisitos para a rapaziada.
Como bónus e para vos provar que a vitalidade dos desenhos animados polacos continua a ser grande, aqui fica um sexto filme, este bem mais recente, de 2004. O assunto é um tema muito característico de agosto e do resto do verão, insetos. O título da película é “Film, że mucha nie siada (Um filme sem moscas)” de Michał Poniedzielski.
A história é rápida de se contar, e o filme também não dura muito tempo, apenas dois minutos. Uma mosca entra numa casa onde já se encontram outras diante de um prato com restos de comida. A primeira mosca faz uma série de habilidades, voa por entre a asa de uma caneca e junto a uma gota de água que pinga de uma torneira. As restantes moscas aplaudem-na espantadas com a sua arte. Nisto a primeira mosca passa junto a um bico de fogão aceso, fica chamuscada e aterra numa bancada de cozinha sem forças para mais habilidades. As outras moscas desinteressam-se imediatamente dela e concentram-se nos restos de comida. A mosca habilidosa fica para ali a falar sozinha, mas ninguém lhe liga nenhuma.
Segundo o realizador, o filme é uma triste reflexão sobre a solidão dos artistas e de como o público que primeiro aplaude, é exatamente o mesmo que ao mais leve chamuscar imediatamente voltas as costas e vai tratar da sua vida.
E pronto, em breve neste blog, num outro dia, seguir-se-á o sétimo capítulo desta série de verão, “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto…”
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